quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Em defesa da escrita - Eduardo Galeano


Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo dentro da cabeça da gente: “ Vale a pena escrever? Será que que as palavras sobreviverão em meio aos adeuses e aos crimes? Tem sentido este ofício que a gente escolheu - ou pelo qual a gente foi escolhido?"
As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas com cuja a sorte ou má sorte se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; que em geral nem sabe ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantos dispõem de dinheiro para comprar livros?
Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema da fome e das cadeias - visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?
A gente escreve para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem, por dentro; mas aquilo que a gente escreve só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade. Ao dizer "Sou assim" e assim me oferecer, acho que gostaria de, como escritor, poder ajudar muitas pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. Entretanto, na América Latina, o acesso aos produtos de arte e de cultura está vedado à imensa maioria das pessoas.

A obra nasce da consciência ferida do escritor e se projeta ao mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade.
Acredito no meu ofício; creio no meu instrumento. Nunca pude entender por que escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entenderos que convertem a palavra e, alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.
Crio que uma função primordial da literatura latino-americana atual consiste em resgatar a palavra, que usada e abusada com impunidade e frequência, para impedir ou atraiçoar a comunicação. Liberdade é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se democracia a vários regimes de terror; a palavra amor define a relação do homem com seu automóvel; por revolução se entende aquilo que um novo detergente pode fazer em sua cozinha; felicidade é uma sensação que se tem ao comer salsichas. País em paz significa, em muitos lugares da América Latina, cemitério em ordem; e onde se diz homem são deveria se ler muitas vezes homem impotente.
Ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa gente, para agora e para depois, apesar da persiguição e e da censura. Pode-se escrever como se dizendo, de certa maneira: "estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim fomos". Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literaturaque ajuda os demais a dormir; antes tira-lhes o sono; que não se propõe enterrar os nossos mortos; antes, quer perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca procura acender o fogo.
Essa literatura continua e enriquece uma formidável tradição de palavrasque lutam. Se é melhor - como cremos - a esperança à nostalgia, talvez essa literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais que mudarão radicalmente o curso de nossa história - mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. e quem sabe ajude a guardar, para os jovens que virão, o "verdadeiro nome de cada coisa" - como dizia o poeta. (vozes e crônicas - Eduardo Galeano)

Revista Informação Pedagógica

4 comentários:

  1. Vim agradecer vc por se tornar um seguidor do meu blog e,aproveitei para conhecer os eu tb.

    As pessoas escrevem para de uma maneira poder viver de bem e em paz consigo mesma.

    Bom dia para vc.

    beijooo.

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  2. Agradeço seu comentário e expresso meu regozijo po tê-lo como seguidor do meu blog.
    Felicito-o por este seu blog bem apresentado
    e muito interessante.

    Parabéns

    Álvaro Oliveira

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  3. Esta pergunta, sobre escrever e gostar de escrever, também já me fiz muitas vezes! Vale a pena? Mas fiquei pensando e cheguei à conclusão que escrever não deixa de ser uma terapia; pôr ordem nas idéias e ocupar nosso tempo com algo saudável. Se eu for pensar por que faço isso ou aquilo, farei a mesma pergunta! Por que pratico esporte, por que vou ao cinema, por que vejo televisão... Vale a pena? Então penso assim, Eduardo: faço para mim, a pessoa que quiser interagir, será bem-vinda. Cuido do meu espírito. Jamais conseguiríamos falar um décimo do que pretendemos.

    Luiz Felipe Angell, humorista peruano falecido em 2004, disse que ‘escrever é, simplesmente um modo de falar sem que interrompam a gente’. É isso que faço.
    Gostei muito do teu texto. Taí!!!
    Abraço
    Tais

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  4. Há uma água clara que cai sobre pedras escuras
    e que, só pelo som, deixa ver como é fria.

    Há uma noite por onde passam grandes estrelas puras.
    Há um pensamento esperando que se forme uma alegria.

    Há um gesto acorrentado e uma voz sem coragem,
    e um amor que não sabe onde é que anda o seu dia.

    E a água cai, refletindo estrelas, céu, folhagem...
    Cai para sempre!

    E duas mãos nela mergulham com tristeza,
    deixando um esplendor sobre a sua passagem.

    (Porque existe um esplendor e uma inútil beleza
    nessas mãos que desenham dentro da água sua viagem
    para fora da natureza,

    onde não chegará nunca esta água imprecisa,
    que nasce e desliza, que nasce e desliza...)

    Cecília Meireles
    in 'Viagem'

    Um abraço

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