quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Retratos com palavras - José Saramago

Um homem vem a subir a rua
Baptista Bastos

Foto Daniel Mordzinsky
"Este año el Nobel ha tenido suerte. Saramago está por encima del prémio. Como Saramago es un sabio, sin duda soportará la gloria con esceptcismo y, después de dar las gracias como un caballero portugués, seguirá escribiendo obras maestras desde la soledad de la lava."

Manuel Vicent - El País

Um homem não é só aquilo que um homem faz. Um homem é também aquilo que ele não fez, e aquilo que ele não permitiu que lhe fizessem. Revejo agora este homem seco e alto, olhos cortados em bisel, boné, passo puxado pelas pernas, passo largo e firme, cara fechada como se fora a ocultação de uma dor só por ele decifrável. Quando sorri, manifesta-se-lhe uma iluminação feliz.

Vem a subir a Rua Luz Soriano. Cumprimenta o senhor João da leitaria, ocasionalmente entra e bebe um café. Um café pausado. O homem é um homem pausado. É um homem que recusa despovoar-se. O homem pausado gosta de falar de pessoas e de sobre pessoas escrever.

É uma época infausta e um tempo inclemente. Um tempo cavo e triste. Um tempo imoral, que exige obediências e servidão. O homem pausado, de passo puxado pelas pernas, passo firme e largo, activa nele a moral do trabalho e a ética da esperança.

Estou à varanda do jornal onde trabalho, e vejo o homem seco e grave entrar no outro jornal, que fica na mesma rua. Vai cumprir a sua tarefa: entregar originais; vai continuar um destino: não ser neutro.

O homem esteve toda a manhã a traduzir livros por outros homens escritos. O homem é um escritor que reescreve, na sua língua antiquíssima, o que outros escreveram nas suas línguas de berço e leite. Por vezes, nesse ofício solitário, o homem diverte-se. Por vezes, nessa profissão humilde, aborrece-se. Mas o homem que sobe a rua dos dois jornais vai rematando a vida num arredondar de conta ao fim do mês.

O homem vai tão mergulhado em pensamentos que ninguém imagina que, lá dentro, nele, no lá dentro dele, agitam-se ecos nostálgicos e porventura obsessivos. O homem não medita em fortunas. O homem não ambiciona glórias. O homem que sobe a rua dos dois jornais deseja, somente, entregar o artigo, para regressar a casa e regressar à banca. O homem, a essa hora do sobre a tarde, quando a tarde começa a ser o risco da noite, escreve as suas coisas, os seus textos mais íntimos, as suas frases mais secretas. O homem está a inventar ruas cheias de mundos. O homem está a dizer aos outros homens que o mundo é uma rua. É preciso subir a rua.

A moral do trabalho, isso mesmo. Traduz de manhã, horas a fio. Escreve, a seguir, crónicas, artigos, recensões. Repousa, no então do então, a redigir os sonhos: fragilidades, desapontamentos, angústias, sentimentos, abusos. O homem escreve sobre a condição humana. O homem escreve ficções, sem nunca deixar que se corroa a película de pudor e discrição com a qual se protege, no mais íntimo e no mais pessoal.

O homem envolveu-se no turbilhão da sua época porque não aceitou a resignação, porque não se submeteu à negligência, porque aprendeu que, mesmo no opróbrio e na clausura, um homem pode ser livre. O homem que escreve é um homem livre. Exactamente porque escreve o homem cujo passo é puxado pelas pernas, cara fechada, gesto pausado, é um homem livre. Lá vem um homem livre. Lá vem um homem de palavras, um homem de palavra; palavra de honra.

Saúdo-o com um gesto. O homem olhou para o homem que, na varanda, o saúda, e sorri aquele sorriso feliz de iluminação feliz. Podia, agora, dizer-lhe uma frase, soltar uma interjeição, berrar um vocativo. Não é preciso: basta o gesto. Os dois homens sabem isso: bastam os gestos; um gesto.

Estou à varanda e, sem ele estar, vejo-o a subir a rua. Ele está noutros sítios, vive agora numa ilha de lava e espanto, escreve, claro!, continua o seu destino, cumpre a sua moral, molda a sua ética. Estou à varanda e vejo-o a subir as montanhas de fogo gelado, lá, para outros mares.

E vejo-o a beijar docemente a docemente amada. Estou à varanda e vôo até à ilha castanha de lava, apenas para conversar com o homem que sobe a rua, que sobe as montanhas e que docemente beija a docemente amada.

Falam dele, no mundo. O mundo aprendeu os portugueses, a dor portuguesa, a melancolia portuguesa, a esperança e o júbilo portugueses, o quente e efusivo amor português ao ler os livros deste homem seco, sábio, sereno, grave, eternamente preocupado com o rigor do pensamento e com a geometria da palavra Ah!, penso agora, à varanda, e a olhá-lo a subir a rua, como foi possível que este homem tivesse empilhado energias suficientes para enfrentar a calúnia, o insulto, o despeito, a inveja, a maledicência, a injúria, a perseguição, a mentira; como foi possível?

Não se exilou, não se refugiou, não fugiu. Deslocou-se, apenas, para outro lugar, continuando a subir a rua, a subir as montanhas; continuando a amar.

Vou no carro. É meio-dia. A TSF dá a notícia: - José Saramago Prémio Nobel!

Páro o carro. Aturdido, carros atrás de mim a buzinar, nó na garganta, sei lá o que está a acontecer-me, começo a sorrir, a rir, começo a voar; de repente, dentro do carro, começo a bater palmas. Estou a bater palmas ao homem que subiu a rua. Talvez seja a isto que se chama emoção; ou comoção?

E lá estou eu à varanda, a olhar o homem de passo puxado pelas pernas. O homem pára, sorri-me, pisca-me o olho, pisco-lhe o olho. O homem olha-me, encolhe os ombros. Como se me estivesse a dizer: são coisas que acontecem.
Revista Camões - 1998 - Portugal

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