sábado, 24 de janeiro de 2009

A TRINCHEIRA

No ermo de lá, a vida não era pensada, só vivida. Pingava cotidiana, mansamente, com um dia depois do outro, até que um deles era sucedido pela morte. Os trabalhos, duros. Os homens, em geral, na lida com a terra e o gado, de manhã à noite; as mulheres no enfrentamento com fogões excessivamente quentes, no lavar, no varrer, no cozinhar, no parir e criar na precariedade de lonjuras meninos que tinham infâncias de cabresto curto abortadas pelo imperativo de ajudar em casa. E tudo era natural, tudo era porque é assim que deve ser.

O trabalho estava tão incrustado na necessidade da sobrevivência, que os excessos que ele impunha não eram notados, senão pelas rugas antecipadas, a saúde sacudida de dores, a vida mais breve. Mas se era assim para todos, era um fato a ser aceito com a conformidade melancólica da pobreza. Não havia tempo para pensar a vida porque, para se estar inserido nela, era preciso agir como um equilibrista, só que em tempo integral.

As aflições ligeiras, as angústias na superfície de pedra da realidade. Os sonhos escassos, semelhantes, ocupavam as cabeças, como um ópio/óbolo da natureza, gerando desejos vagos de rebeliões que se sabia de antemão que não iriam eclodir. Passavam. Os afetos existiam manifestos; muitas vezes (muitas) perfilados, aguardando uma brecha de manifestação no cotidiano.

De modo que era lícito a um trabalhador que "não deixava faltar nada em casa" uns goles ardidos de cachaça. A cachaça que anestesia o cotidiano bruto, o tédio pegajoso como uma doença, a paz indesejada por excessiva. Alguns se entregavam a ela para serem digeridos lentamente como por uma jibóia que tem fome, mas não tem pressa, uma vez que a presa já está travada e segura entre as mandíbulas. Outros se deixavam por conta dela somente no fim de semana. Natural, coisa de homem. As mulheres, em geral, viviam a seco, sem nenhuma anestesia. Lúcidas e impotentes, algumas arriscavam uma alegria.

A conversa incidental costurava os dias com fios de amenidades, outras vezes com casos tenebrosos acontecidos com gente de fora. Sim, alguma coisa de bom havia ali, no ermo, lá não tinha esse tipo de pessoa. E se olhavam desconfiados do que pode morar no outro.

Havia, claro, a cidade. Deslocamento geográfico pequeno; psicológico, grande. Não que o povo dos dois espaços fossem muito diferentes (o que se chamava cidade integrava o ermo), mas porque na cidade havia mais possibilidades do estremeção de uma novidade que fizesse vibrar o cotidiano.
O menino vivia na fronteira dos dois mundos. Era espigado e magricela, branco e rosado, especialmente o narizinho vermelho dos invernos gelados do sul de Minas. Tinha aquela liberdade que têm os meninos de seis anos cuja mãe tem mais cinco crianças e um marido para tomar conta; além, é claro, da casa.

Ela era moça, menos de trinta. Lá o despertar do corpo é uma aleluia que freqüentemente redunda numa maternidade precoce. A menina ama seu brinquedo novo; animal programado, logo se dá conta da crueza de sua pequena criatura e de suas necessidades. Esquece a infância recente, a adolescência apenas iniciada, e vai ser o que viu sua mãe ser. No corpo, uma flacidez de velha senhora parideira; nos olhos e no riso, escapam lampejos de juventude. O menino cotidianamente a rodeava enquanto ela, distraída dele, mecânica, mágica, fazia a casa inteira funcionar. Gostava dos cabelos dela, bem pretos, do modo como suas mãos operosas se moviam destras, ligeiras, e amava perdidamente seu riso raro. Quando ele aflorava, o menino se punha numa agitação eufórica porque naquele instante ele tinha certeza de que ela estava sob o domínio da alegria.

Nos finais de semana pela manhã, o pai sentava à mesa de madeira mal talhada. Punha o cotovelo sobre ela e segurava a cabeça com uma das mãos. O menino aflito do desconforto que intuía nele. Tinha vontade de expressar sua cumplicidade, seu pesar. A entidade, que às vezes lhe concedia duas palavras, ou um carinho ríspido de desarranjar-lhe o cabelo, tomava uma caneca de café ralo, um pedaço mínimo da broa seca. Sua magreza de braços fortes, moldados à enxada, era coroada por um rosto cavo, de olhos fundos; e sua pele tinha um brilho baço, uma transparência de pequenas veias azuis e avermelhadas. A mãe na conformidade do fogão e da urgência das obrigações; ela não tinha finais de semana.

O menino sabia que era sábado, e que nesse dia e no seguinte o bar imantado conduzia o pai para seu interior. Era a hora de tomar conta dele. Confusamente entendia que era sua missão. Ficava, miudinho, nas cercanias do bar, invisível como parte da paisagem, e via que, dois copos depois, o pai ficava valente, e seus companheiros de copo também. Contavam histórias extraordinárias sobre pescarias, acidentes, heroísmos nunca praticados; mas disso o menino não sabia.

Não demorava muito para que a comunicação ficasse confusa, nesse momento o coração apertava. O pai trôpego, saindo do bar. A angústia de saber que não podia com ele. Seis anos, menino magro, o pai, de chumbo. Seguia-o. O coração , aos pulos. O homem ia pelo meio da rua, como um bailarino cuja música ainda não tinha sido inventada. Havia o pequeno tráfego, que para o menino era enorme. Cercava-o, não permitia que, por desgraça, algum animal ou veículo pudesse atingi-lo. Seu dever era mantê-lo visível.

Então assistia à sua queda. Era um menino que todos os dias temia que seu pai se quebrasse. Conferia-o: respirava, resmungava coisas, praguejava frouxo, num engrolar que ia morrendo até o apagão. Presto, o menino corria a pegar pedras. Segurava-as com ambas as mãos, seguia resoluto e com dificuldade ia cercando o pai adormecido de pedras grandes para que todos pudessem ver que ele jazia ali e não se podia tocá-lo. Arrancava apressado touceiras de mato, espalhando-as antes e depois do corpo inerte, para alertar a todos que era preciso fazer um desvio: algo acontecia adiante.

Postava-se, então, em lugar estratégico para vigiá-lo. Inconsciente do seu pequeno vigilante, o pai, inconsciente de si, dormia seu sono de anestesia, até um despertar confuso, um seguir para casa, para a cama tosca, onde emborcava exausto de ser sem saber sequer que o era nem graças a quem.
Revista Discutindo Literatura

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