quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Saramago em Jalisco

Carlos Fuentes

Quando, no Verão passado, levados pelo nosso amigo Juan Cruz, fomos, Silvia e eu, visitar-vos, a Pilar e a ti, na ilha de Lanzarote, primeiro pensei: esta ilha não existe, é uma miragem, aproximo-me de uma nave de pedra fantasmagórica ancorada frente à costa de África... Como é que pode existir uma ilha que não acaba de nascer, que ainda não teve tempo de fazer história?

Olhamos as montanhas de fogo gelado que dominam a paisagem e recordamos que só há dois séculos existem. Olha: encontramo-nos numa ilha trémula onde o fogo está enterrado mas continua vivo, onde basta plantar uma árvore a menos de um metro para que as suas raízes ardam e verter um cântaro de água numa cova para que o líquido ferva.

Ali vivem Pilar e tu, Saramago, e ao chegar a Lanzarote eu perguntei-me: Como pode este escritor escrever rodeado de cordilheiras debaixo do mar e areias de um azul mais intenso que o do oceano e do céu juntos? Que poderes possui Saramago para vencer com a sua pena, dia a dia, a natureza terrível, gelada e fervente ao mesmo tempo, desta ilha que devia permanecer, talvez para sempre, submersa, parte da cratera do mar?

Perdoa-me, Saramago, mas desde então leio e releio os teus livros imaginando-me em Lanzarote e imaginando-te a ti escrevendo-os todos nessa ilha que te permite viajar pela vida sobre uma jangada de pedra com velas de papel.

Lanzarote é a paisagem do primeiro dia da criação.

E no primeiro dia da criação, Deus disse que no princípio era o Verbo e retirou-se para a sua herdade de nuvens, tendo aberto e fechado, instantaneamente, com o seu único verbo, o livro da criação.

Então chegou Saramago e disse: Está certo. No princípio foi o verbo, mas o verbo não é eterno, é simplesmente interminável.

Talvez Deus, ao dizer a sua primeira palavra, pensasse que dizia a última palavra.

E os poderes do mundo estiveram de acordo com Deus. Não há nada a acrescentar. Tudo está dito, tudo está legislado. As imperfeições do mundo são menores e podemos consertá-las, como se conserta um automóvel ou uma cafeteira.

Por outro lado, chegou Saramago, o romancista, e disse-nos: Nada está dito. Tudo está por dizer. Cada vez que alguém diz «Tudo está Dito», isso significa que «Não se disse Nada». Ou que já não se deve dizer mais. Ao calar, disse-se.

José Saramago quer unir-se assim aos homens e às mulheres que querem dizer as suas palavras. Esta é a razão do seu trabalho e a honra dos seus romances: Dizer a palavra anterior, a herdada. Mas também a palavra por vir, a desejada. Esta é a colheita do romancista Saramago: tudo o que foi dito e o que falta dizer.

Estou a definir a arte de Reis, o Memorial do Convento, a História do cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo, o Ensaio sobre a cegueira e, finalmente, Todos os Nomes, os nomes da humanidade que não disse a sua última palavra.

Ricardo Reis, Saramago: Somos mais que um só Fernando Pessoa, somos uma pluralidade de seres faladores, todos podemos ser poetas.

História do cerco de Lisboa, Saramago: Basta mudar um dado para que mude a história. Como o jogador de xadrez, o romancista Saramago, ao mover uma peça do tabuleiro, sacrifica o milhão e meio de possibilidades e consequências que um movimento diferente tivesse desencadeado. Assim presta contas Saramago à verdade: multiplicando as possibilidades da liberdade.

O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago: Porque é que o carpinteiro José não avisou todas as mães de Israel daquilo que José sabe: que Herodes vai assassinar todos os recém-nascidos do reino? Para salvar Jesus, para que Jesus cumpra o seu destino, que será, também, a sorte da morte? Será que José reserva Jesus para a morte na Gólgota? Para isso salva-o Herodes? E os outros, todos os outros meninos, esses o quê? Pode elevar-se a glória de Deus ou de um governo sobre a miséria de um só menino morto?

Todos os Nomes, Saramago: O Sr. José, o escrivão da vida e da morte, sabe que não pode pronunciar-se o nome de Deus sobre o silêncio anónimo de todos os homens. Dei o nome de Deus, Saramago, só para reclamar que se digam também todos os nomes silenciados pela crueldade de Herodes.

És um herege, Saramago, e herege quer dizer o que escolhe, o que conta uma história diferente.

Continua a narrar, Saramago, não contes a história que nos contaram, mas sim a história com que ainda sonhamos.

Não aceites nenhuma verdade, Saramago, pede contas a todas as verdades.

Não te submetas à civilização que nos impõem, Saramago, continua a criar uma civilização à qual possamos pertencer livremente.

Avisa os vizinhos, Saramago, escreve para dar a voz de alarme, aí vem o assassino, o déspota, o torturador, o indiferente, o desdenhoso, o que odeia todos menos a si mesmo, o que encolhe os ombros; enfrenta-os, Saramago, com a paixão dos teus romances, não te dês por vencido, Saramago, não desistas.

Os teus leitores, apesar de serem muitos, são sempre poucos, mas os teus leitores, mesmo que sejam poucos, são sempre muitos.

Dá a cara à tua ilha ardente, Saramago, e navega com ela, com a tua jangada de pedra narrativa, ao lado de Pilar, até nós, os teus amigos aqui em Guadalajara, onde os esperamos aos dois, com os braços abertos, para ouvir finalmente o canto das sereias.

Continua a escrever, Saramago, a interminável Odisseia que vais cantando de ilha em ilha, de leitor em leitor, até formar o mais bonito arquipélago da Terra, o rosário do livro que se nega a escrever a palavra Fim.

Não, a ilha de Saramago não acaba de nascer, a ilha não teve tempo de fazer história, a ilha espera o romance seguinte de José Saramago para continuar a nascer, para inventar a história, para dar olhos aos cegos e nome aos anónimos e justiça ao oprimido e vida à criança.

Em meu nome e no nome de Gabriel García Márquez, tenho um imenso prazer em oferecer a Cátedra Latino-americana Julio Cortázar ao grande escritor português e universal José Saramago.

Texto com que Carlos Fuentes recebeu José Saramago durante a sua visita ao México, em Guadalajara, Jalisco, a 13 de Março de 1998.

Revista Camões

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