quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

LEITURAS CONTEMPORÂNEAS DE EÇA

Uma Passagem de Ano
Eça de Queirós em Lisboa - c. 1882Eça de QueirozFotog., Photographia ContemporaneaIn O Contemporâneo, nº 108, Lisboa [1882], p. [1]BN PP. 16913 V.
Luís Filipe Castro Mendes

Tudo o que escrevemos nasce de uma falta: nós não somos completos. Há uma culpa de que ninguém nos pode perdoar, uma dor de que nada nos pode consolar, um dia que acaba sem nunca se alcançar. No último dia do ano de 1899 José Maria Eça de Queirós chegou ao princípio da noite a casa do seu amigo Eduardo Prado ruminando estes pensamentos melancólicos. A chuva torrencial que alagava Paris e a trovoada, que sempre o aterrorizava, faziam-lhe perceber estranhos presságios e sentir pavores.

A rua de Rivoli estava apinhada, toda a gente se apressava a caminho das suas festas. À porta da casa de Eduardo Prado Eça encontrou Joaquim Nabuco.

"Homem, acalme-se, só enterramos o século", disse Nabuco, vendo o português tão perturbado. O cônsul assumiu a sua máscara de elegância e riu.

Encontrava nos seus amigos brasileiros uma força toda feita de brandura, uma energia mais leve do que o ar, que lhe fazia bem e lhe acalmava os terrores. Deixara em casa Emília e as crianças, mas prometera aos pequenos voltar antes da meia noite. Antes de enterrarem o século.

"O que é que enterramos, Nabuco? Não me apetece o novo século. Não quero mais novidades, mais engenhocas. Não quero mais invenções nem descobertas". O outro respondeu, para sustentar a conversa: "Vai ser diferente para nós, caipiras. O Prado encontrou no sertão da Bahia, num cafundó de Judas fora do tempo e do espaço, um caboclo que sabia de cor as trovas do Bandarra". Mas Eça estava já com o espírito vivo: "Pois é, Nabuco, mas você e o Prado não têm nada que ver com esses caboclos. Vocês são os frutos da decadência, intelectuais embebidos de civilização europeia a quererem governar um povo que não vos compreende."

"Está falando de você mesmo, caro cônsul, e da sua simpática roda de amigos portugueses", atalhou com impaciência Joaquim Nabuco, porque se abria finalmente a porta do apartamento e Eduardo Prado interpunha entre o patamar da escada e o espaço ruidoso e festivo que abria aos amigos o frenesi empolgante da sua cordialidade.

"Já discutindo? Queirós, você está pálido como o personagem romântico que nunca deixou de ser. Nabuco, temos uma boa casa hoje. Temos um moço espertíssimo, o Graça Aranha, o nosso Hilário de Gouveia, tudo gente conhecida, amiga. Tenham uma boa passagem do século e voltem daqui a cem anos!"

Servia-se champanhe gelado e o tinir dos cristais juntou-se no espírito de José Maria às luzes oscilantes do gás, numa sinestesia que o reconciliou por momentos com a vida. Tinha defendido a sua existência como um bicho-de-conta faz o seu casulo. Mas era à arte que tinha de prestar contas, era ela que o esperava no final de todos os caminhos e por trás de todos os sossegos.

Sempre se perguntava "que fiz eu?" e ninguém lhe sabia dar resposta. Certamente, todos os críticos lhe ficavam aquém, Fialho era um poço de inveja, Machado de Assis não o entendera. Sempre perguntava, aos íntimos amigos e aos meros companheiros, a Oliveira Martins como a Teófilo Braga: "que fiz eu?" Mas no mais dentro de si sabia o que fizera.

Prado e Nabuco apresentavam-no aos outros brasileiros. Nunca quisera relacionar-se com escritores franceses, apesar das tentativas de Xavier de Carvalho. Quem o conhecia fora do espaço da sua língua? E quem o poderia entender? Zola gabara-lhe o perfeito francês e lamentara o seu próprio desconhecimento de línguas estrangeiras, com a delicadeza displicente das culturas dominantes. Pedira-lhe sem convicção traduções das suas obras para uma eventual edição em França e logo deixara cair esses projectos. Eça de Queirós, para além do círculo de amigos da sua juventude, só abrira verdadeiramente a sua intimidade àquele pequeno grupo de brasileiros, Eduardo Prado, Domício da Gama, Joaquim Nabuco, com quem alargava o debate que abalara a sua juventude e transformara a sua geração: como ser verdadeiramente moderno quando se é irremediavelmente periférico?

"É o fim do século da Europa, pontificava Graça Aranha, um século americano vai nascer". Eça pensou que talvez fosse melhor para ele não permanecer muito tempo nesse novo século, que lhe parecia trazer a realização dos piores pesadelos humanos. Sentia-se doente, julgava-se no fim. Os médicos receitavam-lhe curas em variadas estâncias termais, curas que o faziam constantemente correr para longe da sua casa, dos seus livros, da sua família, para ser visto de relance por outros médicos, todos com os mesmos diagnósticos vagos e as mesmas terapêuticas inseguras, todos impotentes perante o mal que o dominava.

"Você, Queirós, que conhece os americanos e namorou as americanas, diga lá ao Aranha se eu não tenho razão em ter medo deles?" era Prado que lhe dirigia a palavra, procurando arrancá-lo da sua melancolia. Eduardo Prado discutia com Graça Aranha, que defendia os Estados Unidos, e tentava distrair com essa polémica o seu amigo José Maria, cada vez mais doente e escurecido por dentro.

Eça respondeu: "Das americanas não tenha nunca medo, Graça Aranha, e não acredite em tudo o que diz o Prado. É verdade que em tempos eu me afastei precipitadamente de duas americanas que namorava ao mesmo tempo, mas viam-me vocês a morar em Pittsburgh? Meus queridos, em noites como esta o sofrimento com as nossas miseráveis entranhas vem antepor-se às mais sagradas inquietações quanto ao futuro da Humanidade. Só há uma certeza: a de que daqui a cem anos estaremos todos mortos. Talvez a nossa língua esteja então morta como o latim e só restem eruditos para ler os nossos livros. Talvez todos nós tenhamos sido esquecidos. Talvez não haja mais Portugal nem Brasil, talvez uma catástrofe tenha vindo dizimar os nossos trinetos. Mas hoje estamos aqui e bebemos os vinhos do Eduardo Prado e este me parece ser o nosso primeiro dever para com a Humanidade no século que desponta. Tenho dito."

Aplaudiram-no, risonhos. Prado e Nabuco suspiraram de alívio. "Voltou-lhe a verve", murmurou Nabuco. "Volta sempre", assegurou Prado.

Às nove horas, pontualmente, sentaram-se para jantar. Eça de Queirós parecia divertido. Contara horrores de Nova Iorque, descrevera com exagero, sugerira com subtileza. Sentia-se feliz com o brilho da sua conversa, como se a tivesse escrito. Joaquim Nabuco observava-o.

"Querido amigo", começou a dizer Nabuco, "invejo-o pelas mesmas razões que o admiro. O que me perdeu foi não ter tido a coragem de ficar sozinho. Escrevi sempre em função de objectivos, nunca soube perder-me naquilo que escrevia."

"Que é isso, Nabuco?" estranhou Eça. "A arte por si só não pode nada. Não foram os romances que trouxeram a abolição da escravatura, foi gente como você."

"Mas de nós todos quem ficará?" perguntou o outro. Pareceu a Eça que Nabuco estava tentando posar para a posteridade, à maneira dos Vencidos da Vida nos seus extraordinários retratos. O que fica não somos nós, pensou, é a arte. Mas a arte não nos conhece, serve-se de nós como nós nos servíamos das prostitutas espanholas ou como o Prado e o Nabuco se serviam das escravas da casa dos pais. E o pobre Nabuco a lamentar-se por não ser escritor…

Serviu-se de vinho e veio então paralisá-lo a náusea, depois a dor, tão conhecida, a agarrar-lhe as entranhas uma por uma, logo as tonturas. Torceu-se na cadeira, os outros viram-lhe a palidez e os tremores. Hilário de Gouveia levantou-se para lhe acudir.

"Não é nada, não é nada", cortou Eça. Conhecia a dor, sabia quando passaria, apenas não conseguia disfarçá-la. Prado e Nabuco, que conheciam já aquelas crises, nada comentaram. Mas Hilário de Gouveia interessou-se clinicamente, perguntou por sintomas.

"A revolta das entranhas contra a alma" começou Eça. Mas Prado atalhou: "Ou as consequências de cinquenta anos de comezainas. Queirós, você é o único romancista que eu conheço que descreve ao pormenor os menus dos pantagruélicos jantares dos seus personagens. Merece a dor de barriga."

Eça protestou, citou Balzac, remontou ao Satyricon. Estava contente por Prado ter prontamente afastado a conversa da curiosidade médica de Hilário de Gouveia. Embora descrevesse os seus sintomas meticulosamente nas cartas que escrevia, não gostava de falar de doenças. Pensava demasiadamente na morte para poder falar dela.

"O que eu tenho comido em sua casa, Prado, tem-me servido a imaginação para muitas peças literárias. Não são comezainas de farta-brutos, homem, são manifestações superiores de civilização."

A chuva tornara-se mais pesada e insistente, lá fora. Só homens rodeavam a grande mesa oval, onde se começava agora a servir a sobremesa. Eça pensou no que dissera Nabuco. Ficar sozinho com a arte…Lembrou-se de noites de frio e de febre, em Newcastle, em Bristol, em Leiria – sozinho, sempre sozinho com as folhas de papel que enchia de palavras, cheio de amargura e de dívidas por pagar. E tinham sido esses os momentos triunfais da sua vida?

Joaquim Nabuco, como quem reflecte: "Não me arrependo da acção, ela era necessária. Era a primeira das necessidades. Destruímos o esclavagismo que nos moldou e, no momento mesmo de ele ruir, descobrimos com escandalizado espanto que o amávamos. Mas para além da acção há tudo o que deixámos escondido dentro de nós…"

Eça olhou-o com ternura. Só os que não escrevem fazem uma religião do acto de escrever. Pensou em Machado, com quem nunca procurara estabelecer uma relação pessoal, que o hostilizara com uma crítica injusta a que ele jamais respondera. Machado de Assis, eriçado de cepticismo, nunca partilharia do fascínio religioso pela escrita que este fim de século trazia consigo.

"Que pensará disto tudo Machado de Assis?" perguntou.

"Nunca se sabe o que pensa Machado de Assis" responderam-lhe.

Eça repassava na mente o menu daquele jantar, como se pensasse aproveitá-lo para um romance. Joaquim Nabuco comprazia-se na melancolia do que poderia ter escrito. E Eduardo Prado, solene, mandou servir o café como se estivesse a mandar entrar em cena o novo século.
Revista Camões - Portugal

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