quarta-feira, 24 de junho de 2009

Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor


Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor
por Renato Pinto Venâncio
Memórias de um Sargento de Milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida, é um dos livros mais famosos e engraçados da literatura brasileira. Nele são contadas as aventuras e malandragens do filho de um casal português que, nas primeiras décadas do século 19, veio morar no Rio de Janeiro. O início do livro mostra como os pais do herói se conheceram: “estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.”

Por incrível que pareça, outros textos mostram que essa descrição não é pura invenção literária. No Portugal do século 18 – e, muito provavelmente, também no Brasil –, o beliscão, como expressão de amor, era bastante difundido. Havia até uma tipologia de beliscões, que variavam de acordo com as circunstâncias. Entre os recém-conhecidos, era de bom-tom beliscar “de pincho”, aplicando levemente a torção sobre a pele. Para os mais íntimos valia o beliscão “de estorcegão”, também conhecido como “enérgico”. A moda era tão corrente que houve quem discutisse a necessidade de construir divisórias no interior das igrejas para impedir belisquinhos e beliscões durante a missa.

Os estudiosos desse gesto associam-no ao “namoro camponês”. Beliscões, pisadas de pé e mútuos estalos de dedos consistiam em rituais que simbolizavam a dura vida rural. No universo camponês das sociedades pré-industriais, o domicílio familiar não significava somente local de vida social, mas também de produção de quase todos os bens do cotidiano. Do alimento às roupas, tudo era produzido pelo casal. Daí os rituais que simbolicamente avaliavam a resistência e força dos noivos.

Ao contrário do que se poderia imaginar, o gesto em nada tinha de sadismo ou maldade – ou não era compreendido dessa forma. Muito menos representava uma atitude machista, pois os beliscões eram compartilhados por homens e mulheres. Talvez a forma mais fácil de entender o que foge à nossa compreensão seja através do contraste com a marca ritual do namoro de nossos dias: o beijo. Tal gesto também tem uma longa história. Durante a Idade Média beijar era uma forma de reconhecer poder. Os nobres, por meio do beijo na boca, selavam pactos com seus vassalos. Aos poucos, trovadores medievais foram se apropriando desse gesto para expressar o amor. E ele passou a significar que, na relação amorosa, a mulher era a suserana e o homem, o vassalo; do pacto senhorial também foi copiado o beijo na mão da amada.

Toda essa tradição irá mudar no século 19, período marcado pela industrialização e urbanização, com o surgimento de novas classes sociais. Os burgueses e proletários dos novos tempos adotaram o “beijo” como forma de expressão do amor. Por quê? Ora, não é de se estranhar que as novas classes dominantes copiassem as atitudes refinadas das elites anteriores. Aliás, isso podia até ser prática, já que, desde fins do Antigo Regime, era comum a união entre homens burgueses e mulheres nobres.

Também conspirava a favor do “beijo” o fato de a família, no século 19, ter deixado de ser um local de produção para se tornar apenas um espaço de convívio social. Aos poucos, os casais refinaram seus rituais amorosos. Isso, com certeza, não ocorreu de uma hora para outra. Nem se difundiu simultaneamente em todas as regiões e grupos sociais. Tornar tais comportamentos um objeto de estudo revela um caso limite do conhecimento do passado: mesmo o gesto mais íntimo de nosso cotidiano, mesmo aquilo que ingenuamente acreditamos pertencer à “natureza humana” sofreu mudanças ao longo do tempo. Descobrir e interpretar essas transformações é fazer da história uma aventura.

Renato Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Famílias Abandonadas, entre outros livros

Revista Aventuras na Historia

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A armadilha do tempo

Adaptação de conto da década de 20 enfoca o inexorável: a impossibilidade de escapar da castração da finitude
por Erane Paladino
Divulgação

O Curioso Caso de Benjamin Button - 166 minutos – Estados Unidos, 2008 - Direção: David Fincher- Com: Brad Pitt, Cate Blanchett e Julia Ormond

Agosto de 2005. A alguns minutos da chegada do furacão Katrina, uma senhora no leito de morte, em Nova Orleans, Estados Unidos, abre seu diário e seu coração para a filha, num relato que recupera mais de oitenta anos de amor e segredos. Este é o fio condutor da trama apresentada em O curioso caso de Benjamin Button, adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), lançado na década de 20. Com direção de David Fincher, em 2008, o filme parte da Primeira Guerra Mundial, nos idos de 1918, e chega ao início do século XXI.

Em seu depoimento, Daisy (Cate Blanchett) confessa seu amor por alguém incomum: um homem que nasce velho e rejuvenesce ao longo do tempo. Este é Benjamin Button. Abandonado recém-nascido e, por ironia do destino, criado num asilo, conhece-a ainda menina. Embora distantes por algum tempo, comunicam-se por cartas; Benjamin torna-se navegador e Daisy, bailarina de sucesso. Apesar dos universos e destinos diferentes, o tempo permite o encontro e os dois vivem uma história de amor, no ambiente cheio de esperanças dos anos 60.

Sob este prisma, o filme parece tratar de mais uma história comum, com amor, sofrimento e descobertas. Mas é nas sutilezas que mostra singularidade e poesia. Nesta tonalidade, a primeira lembrança confessada diz respeito a um relojoeiro quase cego, recomendado para fazer uma instalação na estação de trens. O inesperado ocorre na inauguração,quando todos vêem o relógio correr ao contrário. Para seu criador, era uma tentativa de fazer o tempo voltar e recuperar seu filho morto na guerra.

Benjamin é encantado pelo mar e pela força de seu Capitão Mike (Jared Harris). Apaixona-se por Daisy, mas vive passivamente este sentimento, enquanto a jovem vive intensamente. Envolve-se com a esposa de um diplomata que sonha (e realiza na velhice) atravessar a nado o canal da Mancha. A atitude do personagem sugere o ditado da sabedoria oriental, de placidez e complacência diante dos limites e circunstâncias. Suas restrições físicas, decepções amorosas e desafios não o levam à revolta. Nas diferentes situações, parece contemplativo, embora o mundo à sua volta fervilhe. Neste trecho da história, determinada pelo pós-guerra, pela revolução sexual e pela explosão de jovens atuantes, Button rejuvenesce a cada dia, embora seu olhar lembre resignação.

O contraste talvez repouse numa questão importante: embora os limites do tempo sejam intransponíveis, a vida é movimento e surpresa. Freud, em Além do princípio do prazer (1920), fala da luta entre as forças pulsionais de vida e de morte, movimento gerador de uma tensão inerente à condição humana. Como interagem a cada momento de prazer e relaxamento, uma nova força propulsora surge, gerando nova excitação, fruto da impossibilidade de satisfação ou do repouso absoluto, que seriam a morte. Quando se está vivo não caberá o definitivo, no campo das experiências e da vida psíquica. O desejo, então, depende da falta e de um sentimento de incompletude que, para a psicanálise, promove laços, desencontros, embates, paixões, a arte e, enfim, a cultura. De forma bem articulada, o enredo apresenta os momentos em que esperanças e frustrações seriam inevitáveis.

Como se perdoasse os altos e baixos dessa condição, Button é, ao mesmo tempo, protagonista e espectador, cercado por este mundo vibrante. Se não nos é possível escapar dos limites do tempo e da finitude, resta saborear as oportunidades oferecidas e contar com
a força vital. Essa configuração de vida, morte e transformação ganha sentido especial com a chegada do furacão Katrina, que invade com águas violentas a cidade – e a fábrica de relógios. Vale lembrar Mario Quintana “...porque o tempo é uma invenção da morte, não o conhece a vida verdadeira, em que basta um momento de poesia, para nos dar a eternidade inteira”.

Erane Paladino é psicóloga clínica, coordenadora e professora do Departamento de Psicodinâmica do Instituto Sedes Sapientiae, autora do livro O adolescente e o conflito de gerações na sociedade contemporânea (Casa do Psicólogo)

Revista Mente e Cérebro

A avareza na ficção

Balzac e Dostoievski, escritores consagrados do século XIX, viviam atolados em dívidas, não admira que ambos tenham criado personagens sovinas e egoístas
por Moacyr Scliar

THE NATIONAL MUSEUM OF THE PERFORMING ARTS, LONDRES

Sir Herbert Beerbohm Tree no papel de Shylock, em O mercador de Veneza, de Shakespeare, de 1914, por Charles Buchel

Embora muitos já tenham esquecido, o Brasil viveu períodos de grandes surtos inflacionários, nos quais o dinheiro perdia rapidamente o seu valor. Era muito comum ver moedas nas sarjetas das ruas; ali ficavam porque valiam tão pouco que ninguém se dava ao trabalho de abaixar-se para apanhá-las. Isso nos remete a um fato básico da economia e da vida social: a rigor, o dinheiro é uma ficção. Mas exatamente por causa desse ângulo, digamos, ficcional, ele assume também caráter altamente simbólico. E não muito agradável, segundo Freud. Observando que ao longo da história o dinheiro foi freqüentemente (e ainda é) associado à sujeira, o pai da psicanálise postulou que a proposital retenção de fezes, característica da chamada fase anal do desenvolvimento infantil, teria continuidade, no adulto, com a preocupação com o dinheiro. O avarento é um exemplo caricatural disso.

Aos escritores essas coisas não poderiam passar despercebidas, mesmo porque muitos deles tinham, e têm, problemas com dinheiro; Honoré de Balzac (1799-1850) e Fiódor Dostoievski (1821-1881) viviam atolados em dívidas, sobretudo o escritor russo, que era um jogador compulsivo. Não é de admirar que avarentos tenham dado grandes personagens da ficção. O primeiro exemplo é, naturalmente, o Shylock, de William Shakespeare (1564-1616) na comédia O mercador de Veneza, do fim do século XVI. Shylock era um agiota. Na Idade Média, o empréstimo a juros era proibido aos cristãos e reservado ao desprezado e marginal grupo dos judeus. Um arranjo perfeito: quando o senhor feudal não queria ou não podia pagar dívidas contraídas com os agiotas, desencadeava um massacre de judeus, um grupo desprezado e marginalizado, e resolvia o problema. Shylock sente-se desprezado e quando empresta dinheiro a Antonio, um mercador, pede em garantia uma libra da carne do devedor: ele quer que este se revele inadimplente e pague a dívida com a matéria de seu próprio corpo: um esforço desesperado e grotesco para ser respeitado.

Outro usurário que aparece na peça O avarento (1668), de Jean-Baptiste Molière (1622-1673) é Harpagon. Quanto mais rico fica, mais mesquinho se torna, e mais faz sofrer os filhos, o jovem Cléante, apaixonado por Mariane, moça pobre – Harpagon obviamente se opõe ao namoro – e a filha Élise, que ele quer casar com o velho Anselme. Além das brigas com os filhos, Harpagon tem outros motivos para se inquietar: enterrou em seu jardim uma caixa com dez mil escudos de ouro e é constantemente perseguido pela idéia de que sua fortuna será roubada. No fim, a avareza é castigada e Cléante e Élise podem se unir às pessoas que amam.

Avarentos também não faltam nos romances de Charles Dickens (1812-1870), um dos mais conhecidos é o personagem Ebenezer Scrooge de Um conto de Natal (1843), um homem velho, egoísta, insensível, que odeia tudo – até o Natal – uma festa que evoca bondade e generosidade. Scrooge maltrata seu empregado Bob Cratchit, que tem um filho deficiente físico, o Pequeno Tim, mas na noite de Natal é visitado por misteriosas entidades, os Espíritos do Natal, e muda por completo, tornando-se generoso, ajudando Cratchit e sua família. Em Silas Marner, novela de George Eliot (1819-1880) que usava o pseudônimo de Mary Ann Evans, o personagem, um misantropo que prefere o ouro às pessoas, aprenderá, assim como Scrooge, a sua lição. Ele é roubado, mas, ao tomar sob seus cuidados o menino Eppie, mudará, tornando-se um homem melhor. Em Eugénie Grandet (1900), de Balzac, somos apresentados a Félix Grandet, um rico e sovina mercador de vinhos, que se opõe à paixão da filha pelo sobrinho pobre.

Como se pode ver em todas essas obras, a obsessão pelo dinheiro resulta de uma personalidade repulsiva ou patética. Freud tinha razão: o poder simbólico do vil metal não é pequeno e tem atravessado os séculos incólume.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Revista Mente e Cérebro

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sérgio por ele mesmo


"Eu, Maria Amélia e nossos filhos sempre nos tratamos com igualdade, sem relações formais. E, principalmente, não conhecemos a mentira. Não impomos conceitos ou a nossa vontade. Para nós, a mesa nunca foi lugar sagrado de reuniões e nem temos datas de comemorações obrigatórias. Aqui, na casa dos Alvins e dos Buarques de Hollanda, cada um vive como quer e pode. O dinheiro e o sucesso não ocupam lugar em nossa escala de valores. Incentivamos tudo isso e assim demonstramos nossa amizade.
Quando eram crianças, assumíamos as atitudes deles para poder conviver, ensinar, brincar, pensar. Quando cresceram, demos apoio em todas as ocasiões. Essa é a chave da amizade entre os pais e seus filhos. É por isso que temos indivíduos capacitados a viver plenamente o seu tempo."
Sérgio Buarque de Holanda

Exposição da UNICAMP:
Sérgio por ele mesmo

Família
Depoimento à Revista Realidade, mar. 1974. p.38.