sexta-feira, 4 de junho de 2010

A ventania



A ventania
Assovia o vento dentro de mim. Estou despido. Dono de nada, dono de
ninguém, nem mesmo dono de minhas certezas, sou minha cara contra o vento, a
contra-vento, e sou o vento que bate em minha cara.


Livro dos Abraços
Eduardo Galeano

sexta-feira, 30 de abril de 2010

A QUEIMA DE LIVROS


A QUEIMA DE LIVROS

Quando o regime ordenou que fossem queimados
publicamente
Os livros que continham saber pernicioso, e em toda parte
Fizeram bois arrastarem carros de livros
Para as pilhas em fogo, um poeta perseguido
Um dos melhores, estudando a lista dos livros queimados
Descobriu, horrorizado, que os seus
Haviam sido esquecidos. A cólera o fez correr
Célere até sua mesa, e escrever uma carta aos donos do poder.
Queimem-me! Escreveu com pena veloz. Queimem-me!
Não me façam uma coisa dessas! Não me deixem de lado! Eu não
Relatei sempre a verdade em meus livros? E agora tratam-me
Como um mentiroso! Eu lhes ordeno:
Queimem-me!

(Brecht; poemas - 1913-1956. Trad. Paulo Cesar Souza. Brasiliense, 1986. p. 194.)

Perguntas de um trabalhador que lê



Perguntas de um trabalhador que lê5
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída –
Quem a reconstruiu tantas vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros,
na noite em que a Muralha da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os Césares?
A decantada Bizâncio tinha somente palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida,
os que se afogavam gritaram por seus escravos,
na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada naufragou.
Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.

BERTOLD BRECHT

Os que lutam



Os que lutam
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis

BERTOLD BRECHT

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Se os tubarões fossem homens


Se os tubarões fossem homens

Bertolt Brecht

Se os tubarões fossem homens, perguntou a filha da sua senhoria ao Senhor K., eles seriam mais amáveis com os peixinhos?
Certamente, disse ele.
Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grandes gaiolas para os peixes pequenos com todo tipo de alimento, tanto animal como vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca, e tomariam toda espécie de medidas sanitárias.
Se, por exemplo, um peixinho ferisse a barbatana, então lhe fariam imediatamente um curativo, para que ele não morresse antes do tempo. Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois os peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes.
Naturalmente, haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas, os peixinhos aprenderiam como nadar para as goelas dos tubarões. Precisariam saber geografia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.
O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais belo e mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam de sua felicidade futura.
Os peixinhos saberiam que esse futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam evitar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se um dentre eles mostrasse tais tendências. Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os seus peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme diferença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões.
Os peixinhos – eles iriam proclamar – são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matasse alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma pequena medalha de sargaço e receberia o título de herói.
Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, representando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardins onde se brinca deliciosamente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as gargantas dos tubarões, e a música seria tão bela, que a seus acordes todos os peixinhos, com a orquestra na frente, sonhando, embalados nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões.
Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões. Além disso, se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isto seria agradável para os tubarões, pois eles teriam, com maior freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores, detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc.
Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens.


Bertolt Brecht (1898-1956) reuniu na obra Histórias do Senhor Keuner, em 1932, parábolas escritas com humor e ironia, satirizando o comportamento da época. pucviva

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Em Vida...Vida... A Celebrar!


Em Vida...Vida... A Celebrar!

Em Vida...Vida... A Celebrar!
Manollo Ferreira


Derrotas...
Vitórias...
Passam!
Em branco...
Em preto...
A cores!
Ficam alegrias por estar,
Num gesto,
De boca... A sorrir!
De olho... A brilhar!
De mãos em braços... A abraçar!
Homens!
Mulheres!
Amigos, companheiros, familiares...
Cúmplices de um tempo perfeito
Em festa, a brindar...
Momentos em vida...
... Vida... A celebrar!
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Crônica da cidade do Rio de Janeiro



Crônica da cidade do Rio de Janeiro
No alto da noite do Rio de Janeiro, luminoso, generoso, o Cristo Redentor
estende os bracos. Debaixo desses bracos os netos dos escravos encontram amparo.
Uma mulher descalca olha o Cristo, la de baixo, e apontando seu fulgor,
diz, muito tristemente:
— Daqui a pouco, ja nao estara mais ai. Ouvi dizer que vao tirar Ele dai.
— Nao se preocupe — tranquiliza uma vizinha —. Nao se preocupe: Ele volta.
A policia mata muitos, e mais ainda mata a economia. Na cidade violenta
soam tiros e tambem tambores: atabaques, ansiosos de consolo e de vinganca,
chamam deuses africanos. Cristo sozinho nao basta.
Livro dos Abraços - Eduardo Galeano