domingo, 11 de outubro de 2009

FRANZ KAFKA - O SILÊNCIO DA SEREIAS


domingo, 6 de maio de 1984.

FRANZ KAFKA


Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação:

Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.

Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.


Tradução de Modesto Carone

Arquivos da Folha de São Paulo

FRANZ KAFKA - UMA FOLHA ANTIGA


FRANZ KAFKA

sábado, 9 de dezembro de 1989.
É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da nossa pátria. Até então não havíamos nos importado com isso, entregues como estávamos ao nosso trabalho; mas os acontecimentos dos últimos tempos nos causam preocupações.

Tenho uma oficina de sapateiro na praça em frente ao palácio imperial. Mal abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo ocupadas por homens armados as entradas de todas as ruas que confluem para cá. Mas não são soldados nossos e sim nômades vindos do norte. De uma maneira incompreensível para mim eles penetraram até a capital, que no entanto fica muito distante da fronteira. Seja como for já estão aí, parece que a cada manhã se tornam mais numerosos.

Seguindo sua natureza eles acampam sob céu aberto, pois abominam as casas. Ocupam-se em afiar as espadas, aguçar as lanças e praticar exercícios a cavalo. Fizeram desta praça tranquila, mantida sempre escrupulosamente limpa, uma autêntica estrebaria. É verdade que nós tentamos às vezes sair às pressas das nossas lojas para retirar pelo menos o grosso da sujeira, mas isso ocorre com uma frequência cada vez menos, pois o esforço é inútil e além disso corremos o perigo de cair sob as patas dos cavalos selvagens e de ser feridos pelos chicotes.

Com os nômades não se pode falar. Eles não conhecem a nossa língua, na realidade quase não têm um idioma próprio. Entendem-se entre si de um modo semelhante ao das gralhas. Ouve-se sem cessar esse grito de gralhas. Para eles nossa maneira de viver, nossas instituições são tão incompreensíveis quanto indiferentes. Consequentemente recusam também a linguagem dos sinais. Você pode deslocar as mandíbulas e destroncar as mãos que eles não o compreendem nem nunca irão compreender. Muitas vezes fazem caretas; mostram então o branco dos olhos e a baba cresce na boca, mas com isso não querem dizer alguma coisa nem assustar ninguém. Fazem-no porque é essa a sua maneira de ser. Aquilo que precisam eles pegam. Não se pode afirmar que empreguem a violência. Ante a sua intervenção as pessoas se põem de lado e deixam tudo para eles.

Também das minhas provisões eles levaram uma boa parte. Mas não posso me queixar quando vejo por exemplo o que acontece ao açougueiro em frente. Mal ele traz as suas mercadorias, tudo já lhe foi tirado e engolido pelos nômades. Os cavalos deles também comem carne; muitas vezes um cavaleiro fica ao lado do seu cavalo e os dois se alimentam da mesma posta de carne, cada qual por uma extremidade. O açougueiro é medroso e não ousa acabar com o fornecimento. Mas nós entendemos o que se passa, recolhemos dinheiro e o ajudamos. Se os nômades não recebessem carne, quem é que sabe o que lhes ocorreria fazer? De qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer ainda que recebam carne diariamente?

Não faz muito o açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei bem uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair já fazia silêncio há muito tempo; como bêbados em torno de um barril de vinho eles estavam deitados mortos de cansaço em torno dos restos do boi.

Justamente nessa época acreditei ter visto o imperador em pessoa numa janela do palácio; em geral ele nunca vem a esses aposentos externos, vive sempre no mais interno dos jardins; mas dessa vez, pelo menos assim me pareceu, ele estava em pé junto a uma das janelas olhando de cabeça baixa o movimento diante do seu castelo.

- O que irá acontecer - todos nós nos perguntamos. - Quanto tempo vamos suportar esse peso e tormento? O palácio imperial atraiu os nômades mas não é capaz de expulsá-los. Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás das janelas gradeadas. A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar.


Tradução de MODESTO CARONE

Arquivos Folha de São Paulo

FRANZ KAFKA - CHACAIS E ÁRABES


FRANZ KAFKA


Estávamos acampados no oásis. Os companheiros dormiam. Um árabe alto e branco passou por mim; tinha cuidado dos camelos e caminhava até o lugar onde dormia.

Lancei-me de costas na relva; não queria dormir; não conseguia; o uivo lamentoso de um chacal à distância; sentei-me outra vez. E o que estivera tão longe estava de repente perto. Chacais fervilhavam em torno de mim: olhos de ouro fosco brilhando e se extinguindo; corpos esguios como que movidos em ritmo regular e lépido por um chicote.

Um deles veio lá de trás, abriu caminho sob o meu braço, colado a mim como se necessitasse do meu calor, depois ficou à minha frente e, olho no olho, me falou:

- Sou o mais velho dos chacais em toda a redondeza. Estou contente em poder saudá-lo ainda aqui. Já tinha quase perdido a esperança, pois esperamos por você infindável; minha mãe esperou, a mãe dela esperou e assim todas as mães, até chegar à mãe de todos os chacais. Acredite em mim.

- Isso me deixa admirado - disse eu, esquecendo de acender a pilha de lenha que estava preparada para manter com a sua fumaça os chacais à distância.

- É só por acaso que venho do norte distante e estou fazendo uma curta viagem. O que vocês querem, chacais?

Como que encorajados por essa fala talvez demasiado amável eles formaram um círculo mais estreito ao meu redor; todos tinham a respiração curta e resfolegante.

- Sabemos que você vem do norte - começou o mais velho - e é nisso que se funda a nossa esperança. Lá existe a capacidade de compreensão que não se pode encontrar aqui entre os árabes. Dessa fria altivez, você sabe, não pode saltar nenhuma centelha de compreensão. Eles matam animais para comê-los e desprezam a carniça.

- Não fale tão alto - disse eu -, há árabes dormindo perto.

- Você é realmente um estrangeiro - disse o chacal. Se não fosse, saberia que nunca na história do mundo um chacal teve medo de um árabe. Deveríamos ter medo deles? Não é desgraça suficiente termos sido jogados no meio de um povo como esse?

- Pode ser, pode ser - disse eu -, não me atrevo a julgar coisas que estão tão distantes de mim; parece ser uma disputa muito antiga; seguramente está no sangue e talvez por isso só termine com o sangue.

- Você é muito sagaz - disse o velho chacal e todos respiraram mais célere ainda, com os pulmões excitados, embora todos eles estivessem parados; um cheiro amargo, só suportável por momentos com os dentes cerrados, fluía das bocarras abertas. - Você é muito sagaz; o que diz corresponde à nossa velha doutrina. Tiramos-lhes portanto o sangue e a disputa acaba.

- Oh - disse eu com mais veemência do que queria - eles irão se defender; irão abatê-los a tiros aos montes com os seus rifles.

- Você nos interpreta mal - disse ele - segundo a maneira dos homens, que persiste também no norte distante. Sem dúvida nós não iremos matá-los. O Nilo não teria água suficiente para nos purificar. Já diante da mera aparição dos seus corpos vivos partimos às pressas para um ar mais puro, para o deserto, que por essa razão é o nosso lar.

E todos os chacais em volta aos quais nesse ínterim haviam se juntado muitos outros vindo de longe, afundaram as cabeças entre as pernas dianteiras, limpando-as com as patas; era como se quisessem ocultar uma antipatia tão terrível que eu teria preferido escapar do seu círculo com um grande salto.

- Então, o que vocês pretendem fazer? - perguntei e quis me levantar mas não pude; dois animais jovens haviam cravado os dentes com firmeza na parte de trás do meu casaco e da minha camisa; tive de permanecer sentado.

- Eles estão segurando a sua cauda - disse o chacal num tom de esclarecimento e seriedade. - É um testemunho de respeito.

- Eles precisam me soltar! - bradei voltado ora para o velho, ora para os jovens chacais.

- É evidente que eles irão fazê-lo - disse o velho chacal - se você o exige. Mas demora um pouco, pois, seguindo o costume, eles morderam fundo e têm que separar lentamente as mandíbulas. Enquanto isso ouça o nosso pedido.

- O comportamento de vocês não me torna muito receptivo - disse eu.

- Não cobre a nossa falta de jeito - disse e pela primeira vez recorreu à ajuda do tom lamentoso da sua voz natural. - Somos pobres animais, temos apenas mandíbulas; só nos restam as mandíbulas para tudo o que queremos fazer, seja bom, seja mau.

- O que então você quer? - perguntei apenas um pouco abrandando.

- Senhor - exclamou e todos os chacais uivaram; na distância mais remota parecia ser uma melodia. - Senhor, deve acabar com a disputa que divide o mundo em dois. Nossos antepassados descreveram aquele que irá fazê-lo exatamente assim como você é. Precisamos de paz com os árabes, de ar respirável; purificada deles a vista em torno do horizonte; nenhum grito de lamúria de um carneiro que o árabe esfaqueia; todos os animais devem morrer tranquilamente; bebidos por nós sem transtorno até ficarem vazios e limpos até os ossos. Limpeza, nada mais que limpeza é o que nós queremos - e aí todos choraram e soluçaram. - Como suporta viver neste mundo, ó nobre coração, doces entranhas? A sujeira é o branco deles, a sujeira o seu preto; um horror a sua barba; é preciso cuspir à vista do canto dos seus olhos; e se erguem o braço, o inferno se abre na sua axila. Por isso, senhor, por isso, ó caro senhor, com a ajuda dessas mãos que tudo podem, corte-lhes de lado a lado os pescoços com esta tesoura!

E acompanhando uma guinada da sua cabeça apareceu um chacal que trazia num dente canino uma pequena tesoura de costura coberta de ferrugem velha.

- Finalmente a tesoura - e agora basta! - bradou o chefe árabe da nossa caravana que havia se esgueirado contra o vento até nós e nesse momento brandia seu gigantesco chicote.

Todos os chacais se dispersaram o mais rápido possível, mas ficaram a alguma distância, agachados bem perto uns dos outros - tantos, tão juntos e tão parados que pareciam um pequeno radie à cuja volta voassem fogos-fátuos.

- Então o senhor também viu e ouviu este espetáculo disse o árabe e riu com a alegria que a contensão da sua estirpe permitia.

- Você sabe então o que os animais querem? - perguntei.

- Naturalmente, senhor - disse ele. - Isso é conhecido desde há muito tempo; enquanto existirem árabes essa tesoura vai peregrinar pelo deserto e andar conosco até o fim dos nossos dias. Ela é oferecida a todo europeu para realizar a grande obra; todo europeu é justamente aquele que lhes parece convocado para isso. Esses animais têm uma esperança absurda; são loucos, verdadeiros loucos. Por isso nós os amamos; são nossos cães - mais belos que os de vocês. Veja um camelo morreu durante a noite, mandei que o trouxessem para cá.

Quatro carregadores chegaram e atiraram o cadáver diante de nós. Mal ele jazia ali os chacais levantaram suas vozes. Como que puxados irresistivelmente por cordas cada um deles veio se aproximando, com paradas no meio do caminho, o corpo esfregando no chão. Tinham esquecido os árabes, esquecido o ódio, fascinava-os a presença do corpo que exalava um cheiro forte e obliterava tudo. Um deles já se pendurava no pescoço e encontrava a jugular com a primeira mordida. Como uma pequena bomba frenética que quer apagar um incêndio poderoso de uma maneira tão incondicional quanto sem perspectiva, cada músculo do organismo se estirava e contraía no seu lugar. E logo todos se amontoaram sobre o cadáver fazendo o mesmo trabalho.

Então o chefe da caravana vibrou com energia o chicote em todos os sentidos sobre eles. Os chacais ergueram a cabeça, meio ébrios e desmaiados; viram os árabes em pé diante deles; começaram a sentir o chicote com os focinhos; recuaram num salto e correram um trecho para trás. Mas o sangue do camelo já se espalhava em poças e fumegava, o corpo estava bem aberto em vários lugares. Não conseguiram resistir; estavam de novo ali; o chefe árabe ergueu outra vez o chicote; segurei seu braço.

- Tem razão, senhor - disse ele. - Vamos deixá-los no seu ofício; é hora de levantar acampamento. Animais maravilhosos, não é verdade? E como nos odeiam!


Tradução de Modesto Carone


Arquivos Folha de São Paulo

terça-feira, 29 de setembro de 2009

LITERATURA, PÃO E POESIA


LITERATURA, PÃO E POESIA
Sérgio Vaz*


A literatura na periferia não tem descanso, a cada dia chega mais livros. A cada dia chega mais escritores, e, por conseqüência disso, mais leitores. Só os cegos não querem enxergar este movimento que cresce a olho nu, neste início de século. Só os surdos não querem ouvir o coração deste povo lindo e inteligente zabumbando de amor pela poesia. Só os mudos, sempre eles, não dizem nada. Esses custam a acreditar.

Não quero nem falar dos saraus que estão acontecendo aos montes, pelas quebradas de São Paulo. Isto me tomaria muito tempo. Haja visto as dezenas de encontros literários, pipocando nas noites paulistanas. Cada qual do seu jeito, cada qual com seu tema, cada qual a sua maneira de cortejar as palavras.

Mas eu quero falar mesmo e da poesia que se espalhou feito um vírus no cérebro dos homens e mulheres da periferia. Pois é, essa mesma poesia que há tempos era tratada como uma dama pelos intelectuais, hoje vive se esfregando pelos cantos dos subúrbios à procura de novas emoções.

O Tal poema, que desfilava pela academia, de terno e gravata, proferindo palavras de alto calão para platéias desanimadas, hoje, anda sem camisa, feito moleque pelos terreiros, comendo miudinho na mão da mulherada. Vocês, por acaso, já ouviram falar do tal poema concreto? Pois é, os trabalhadores e desempregados estão construindo bibliotecas com eles, nas favelas. E o lobo mau pode assoprar que não derruba. Apesar da pouca roupa que lhe deram está se sentindo todo importante com sua nova utilidade.

A periferia nunca esteve tão violenta, pelas manhãs é comum ver, nos ônibus, homens e mulheres segurando armas de até 400 páginas. Jovens traficando contos, adultos, romances. Os mais desesperados, cheirando crônicas sem parar. Outro dia um cara enrolou um soneto bem na frente da minha filha.

Dei-lhe um acróstico bem forte na cara. Ficou com a rima quebrada por uma semana.

A criançada está muito louca de história infantil. Umas já estão tão viciadas, que, apesar de tudo e de todos, querem ir para as universidades.

Viu, quem mandou esconder a literatura da gente, Agora nós queremos tudo de uma vez!

Dizem por aí que alguns sábios não estão gostando nada de ver a palavra bonita beijando gente feia. Mas neste país de pele e osso, quem é o sábio?

Quem é o feio? E olha que a gente nem queria o café da manhã, só um pedaço de pão. Que comam brioches!

Não, não é Alice no país da maravilha, mas também não é o inferno de Dante.

É só o milagre da poesia.
Quem é que odeia ler agora?

Manifesto da Antropofagia periférica

A Periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de um futuro limpo, para todos os brasileiros.

A favor de um subúrbio que clama por arte e cultura, e universidade para a diversidade. Agogôs e tamborins acompanhados de violinos, só depois da aula.

Contra a arte patrocinada pelos que corrompem a liberdade de opção. Contra a arte fabricada para destruir o senso crítico, a emoção e a sensibilidade que nasce da múltipla escolha.

A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

A favor do batuque da cozinha que nasce na cozinha e sinhá não quer. Da poesia periférica que brota na porta do bar.
Do teatro que não vem do “ter ou não ter...”. Do cinema real que transmite ilusão.
Das Artes Plásticas, que, de concreto, quer substituir os barracos de madeiras.
Da Dança que desafoga no lago dos cisnes.
Da Música que não embala os adormecidos.
Da Literatura das ruas despertando nas calçadas.

A Periferia unida, no centro de todas as coisas.

Contra o racismo, a intolerância e as injustiças sociais das quais a arte vigente não fala.
Contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala.

É preciso sugar da arte um novo tipo de artista: o artista-cidadão. Aquele que na sua arte não revoluciona o mundo, mas também não compactua com a mediocridade que imbeciliza um povo desprovido de oportunidades. Um artista a serviço da comunidade, do país. Que armado da verdade, por si só exercita a revolução.

Contra a arte domingueira que defeca em nossa sala e nos hipnotiza no colo da poltrona.

Contra a barbárie que é a falta de bibliotecas, cinemas, museus, teatros e espaços para o acesso à produção cultural.
Contra reis e rainhas do castelo globalizado e quadril avantajado.
Contra o capital que ignora o interior a favor do exterior. Miami pra eles? “Me ame pra nós!”.
Contra os carrascos e as vítimas do sistema.
Contra os covardes e eruditos de aquário.
Contra o artista serviçal escravo da vaidade.
Contra os vampiros das verbas públicas e arte privada.
A Arte que liberta não pode vir da mão que escraviza.

Por uma Periferia que nos une pelo amor, pela dor e pela cor.

É TUDO NOSSO!

*Sérgio Vaz - é poeta da periferia, criador da Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa), autor de Pensamentos Vadios (1999), A Margem do Vento (1995) e Subindo a ladeira mora a noite (1992).

Revista Z Cultural

domingo, 27 de setembro de 2009

A neve e o amor


Neste dia de calor ardente, estou esperando a neve.
Sempre estive à sua espera.
Quando menino, li Recordações da Casa dos Mortos
e vi a neve caindo na estepe siberiana
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Amo a neve porque ela não separa o dia da noite
nem afasta o céu das aflições da terra.
Une o que está separado:
os passos dos homens condenados ao gelo escurecido
e os suspiros de amor que se perdem no ar.
É necessário ter um ouvido muito afiado
para ouvir a música da neve caindo, algo quase silencioso
como o roçar da asa de um anjo, caso os anjos existissem,
ou o estertor de um pássaro.
Não se deve esperar a neve como se espera o amor.
São coisas diferentes. Basta abrirmos os olhos para ver a neve
cair no campo desolado. E ela cai em nós, a neve branca e fria
que não queima como o fogo do amor.
Para ver o amor os nossos olhos não bastam,
nem os ouvidos, nem a boca, nem mesmo os nossos corações
que batem na escuridão com o mesmo rumor
da neve caindo nas estepes
e nos telhados das cabanas escuras
e no casaco roto de Fédor Dostoievski.
Para ver o amor, nada basta. E tanto o frio do inverno como o calor escaldante
o afastam de nós, de nossos braços abertos
e de nossos corações atormentados.
Fiel à minha infância, prefiro ver a neve
que une o céu e a terra, a noite e o dia,
a ser a presa indefesa do amor,
o amor que não é branco nem puro nem frio como a neve
.

Lêdo Ivo

Academia Brasileira de Letras - Revista Brasileira

Novo soneto de Paris



Uma folha caída na avenida.
É assim que se extingue um amanhã.
Paris me diz que toda vida é vã,
a branca estrela da estação perdida.

A ti, folha de plátano caída
no chão dourado da plúmbea manhã,
um frio de outono que nenhuma lã
vai proteger da morte prometida,

a ti dedico os passos derradeiros
que me afastam da vida quando passo
sob as árvores da longa alameda.

Entre a noite indolente e os sóis primeiros
cai a folha do amor, e cai no espaço
do dia breve. E a morte é muda e leda.


Lêdo Ivo

Academia Brasileira de Letras - Revista Brasileira

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Poesia é ouvir vozes

Poesia é ouvir vozes
Em sua obra, o poeta Ferreira Gullar mostra que mesmo a notícia mais corriqueira pode ser transformada em expressão poética

Gabriel Perissé


Obra de Antonio Henrique Amaral, no livro Resmungos, de Ferreira Gullar e Antonio Henrique Amaral, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006
O poeta Ferreira Gullar (1930-) ouve vozes desde muito cedo. Desde sempre, a vida toda, e com essas vozes aprende. Um dos seus livros chama-se Muitas vozes (1999), porque de fato são muitas as que chegam aos seus ouvidos, provenientes das entranhas da realidade e do próprio poema:

[...] O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
- essa voz somos nós.

Afinar o ouvido para apreender essas vozes é detectar a humanidade, esperar uma fala, desejar o início de um diálogo. Em outro poema, escrito quando se encontrava preso em 1969 no Rio de Janeiro, em plena ditadura militar, o poeta ouvia coisas:

Ouço as árvores
lá fora
sob as nuvens

Ouço vozes
risos
uma porta que bate ("O prisioneiro", no livro Dentro da noite veloz)

Com o horizonte visual limitado, com sua liberdade física cerceada, o prisioneiro se liberta pela audição atenta, torna-se hipersensível aos ruídos e mensagens que venham de fora dar-lhe notícias sobre o mundo.

Barulhos e aprendizado
Além de vozes, barulhos. Barulhos são também vozes que nos falam. Não são vozes do Além, mas do aquém mesmo, vozes que estão ao nosso lado, ou atrás das paredes, ou debaixo do chão. Vozes embrulhadas, ruídos que dizem alguma coisa à sensibilidade, mas dependem do silêncio interior. Uma leitura educadora é sempre uma leitura silenciosa, na qual podemos escutar melhor, e aprender.

No poema "Aprendizado", do livro Barulhos (1987), Gullar faz uma descoberta lancinante. A alegria e o sofrimento são duas faces da mesma vida, dessa vida cheia de barulhos e ruídos. O poema, no entanto, cria um espaço de discernimento:

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Não é aprendizado fácil. O poeta exige de nós coerência máxima. Quer que abramos nossos ouvidos e nossa existência à realidade, em suas dimensões de riso e choro, sem ilusões ou alienações. Já antes, em Dentro da noite veloz (1975), no poema "A casa", ensinava que sob o assoalho da casa de sua infância, sob as tábuas velhas, havia algo ou alguém falando. De lá saía uma fala. Seriam os mortos a falar? Ou uma moeda que rolara e caíra ali embaixo e lá permaneceria para sempre, esquecida? Seriam as chuvas torrenciais? Seria a classe operária a falar?

Fala
talvez um rato
que nos ouvia de sob as tábuas
e conosco aprendeu a mentir
e amar

Se fosse um rato, excelente aluno ele teria sido. Aprendera com os homens que a convivência é tão ambígua quanto a própria vida. Se a vida é alegria e sofrimento indissociáveis entre si, a perigosa dupla mentir-amar constitui outra fonte de perplexidade. E a perplexidade inevitável, por sua vez, remete à lucidez. É outra dupla com que nos deparamos. Perplexo, sinto-me chamado a pensar com uma nova maturidade.

Poesia educadora
Quando ouvimos as vozes dissonantes e opostas da vida, ficamos perplexos, perdemos a segurança que julgávamos ter. Não seria a educação formal o caminho para eliminar essa confusão, dando-nos a certeza de que existe uma resposta única e verdadeira, capaz de acalmar nosso coração e nossa mente?

No discurso de abertura que fez ao 25º Congresso Mundial de Educação através da Arte, realizado no Rio de Janeiro, em 1983 (incluído em Indagações de hoje, de 1989), Gullar fez uma consideração assustadora e realista. A educação não se restringe mais (se é que algum dia se restringiu) aos espaços da família e da escola. Está em toda parte, sem projetos pedagógicos que lhe deem unidade; e em toda parte há educadores, a favor ou contra a nossa humanização:

A sociedade educa através dos programas de rádio, dos programas de televisão, dos jornais, dos livros, das revistas pornográficas, das histórias em quadrinhos, das empresas, da prática do esporte, dos assaltos à mão armada, da tortura dos prisioneiros políticos e dos presos comuns; das palavras dos pais e das ações dos pais. Cada indivíduo é um professor a serviço da sociedade ou contra ela, mas sempre em função dos valores estabelecidos.

A poesia educa também. Os poetas são antenas, radares, sensores vivos que captam todo tipo de informações desencontradas, e as transformam em palavras significativas. São escutadores profissionais da existência. Mesmo a notícia tão pedestre como a de um vestibulando que fugiu de casa ao saber do resultado negativo pode traduzir-se, se bem ouvida, em poema-carta, como de fato aconteceu no poema "Vestibular", ainda em Dentro da noite veloz.

O poeta conversa com Paulo Roberto Parreiras que, de raiva ou vergonha, sumiu de casa. Tanto ele estudou para passar no vestibular, tantos sacrifícios fez ao longo do ano letivo, tantas renúncias aos prazeres da adolescência, e mesmo assim foi reprovado. O poeta compreende sua tristeza, sua frustração, mas não pode lhe oferecer muito mais, além de uma palavra "de amigo desconhecido".

Contudo, é essa voz desconhecida ao desconhecido Paulo, voz que nasce de sob as tábuas do poema, é essa voz de poeta que pode, ao rapaz (e a nós), educar. Porque também nós somos reprovados em centenas de vestibulares, testes, provas e exames, reprovados pelos outros, pela sociedade, pelo destino:

Não sei pra onde você foi
nem o que pretende fazer
nem posso dizer que volte
para casa,
estude (mais?) e tente outra vez.
Não tenho nenhum poder,
nada posso assegurar.
Tudo que posso dizer-lhe
é que a gente não foge
da vida,
é que não adianta fugir.
Nem adianta endoidar.
Tudo o que posso dizer-lhe
é que você tem o direito de estudar.
É justa a sua revolta:
seu outro vestibular.

Revoltar-se contra a vida faz parte do jogo da vida. E o "outro vestibular" é mais do que outra prova para ingressar na faculdade. É outro pórtico, outra soleira - espaço perigoso que nos separa da vida, e à vida nos conduz.

Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP)
www.perisse.com.br

Revista Educação