domingo, 11 de outubro de 2009

FRANZ KAFKA - O SILÊNCIO DA SEREIAS


domingo, 6 de maio de 1984.

FRANZ KAFKA


Prova de que até meios insuficientes - infantis mesmo podem servir à salvação:

Para se defender da sereias, Ulisses tapou o ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada. O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do seu silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.

Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semi-abertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele. Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses.

Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.


Tradução de Modesto Carone

Arquivos da Folha de São Paulo

5 comentários:

  1. Tenho um abraço para te dar, que te espera no Nova Pangeia.

    Um beijinho.

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  2. Vim pedir desculpa pela minha ausência no teu blogger mais como havia um feriado e trabalho com turismo ficou difícil, mais agora com um pouco menos de trabalho volto a normalidade.

    "O que diferencia uma pessoa de outra é o seu imaginário, a interpretação que dá aos fatos da vida." (Tisuka Yamasaki)
    Abraços com muito carinho.

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  3. Agradeço sua visita e fico feliz que me acompanhe pelos labirintos de minh'alma.

    Fique à vontade para enriquecer meus poemas com suas impressões e sentimentos.

    Parabéns pelo seu blog!

    Abraços poéticos.

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  4. Kafka

    Debato-me para
    deixar de estar
    de bruços, para
    retomar minha
    inastuta marcha no mundo
    impassível e cheio
    de lâminas latrocidas
    (embrulhadas juntas
    em um buquê de meios-dias).


    Um abraço!

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