domingo, 11 de outubro de 2009

FRANZ KAFKA - UMA FOLHA ANTIGA


FRANZ KAFKA

sábado, 9 de dezembro de 1989.
É como se muita coisa tivesse sido negligenciada na defesa da nossa pátria. Até então não havíamos nos importado com isso, entregues como estávamos ao nosso trabalho; mas os acontecimentos dos últimos tempos nos causam preocupações.

Tenho uma oficina de sapateiro na praça em frente ao palácio imperial. Mal abro a porta no crepúsculo da manhã e já vejo ocupadas por homens armados as entradas de todas as ruas que confluem para cá. Mas não são soldados nossos e sim nômades vindos do norte. De uma maneira incompreensível para mim eles penetraram até a capital, que no entanto fica muito distante da fronteira. Seja como for já estão aí, parece que a cada manhã se tornam mais numerosos.

Seguindo sua natureza eles acampam sob céu aberto, pois abominam as casas. Ocupam-se em afiar as espadas, aguçar as lanças e praticar exercícios a cavalo. Fizeram desta praça tranquila, mantida sempre escrupulosamente limpa, uma autêntica estrebaria. É verdade que nós tentamos às vezes sair às pressas das nossas lojas para retirar pelo menos o grosso da sujeira, mas isso ocorre com uma frequência cada vez menos, pois o esforço é inútil e além disso corremos o perigo de cair sob as patas dos cavalos selvagens e de ser feridos pelos chicotes.

Com os nômades não se pode falar. Eles não conhecem a nossa língua, na realidade quase não têm um idioma próprio. Entendem-se entre si de um modo semelhante ao das gralhas. Ouve-se sem cessar esse grito de gralhas. Para eles nossa maneira de viver, nossas instituições são tão incompreensíveis quanto indiferentes. Consequentemente recusam também a linguagem dos sinais. Você pode deslocar as mandíbulas e destroncar as mãos que eles não o compreendem nem nunca irão compreender. Muitas vezes fazem caretas; mostram então o branco dos olhos e a baba cresce na boca, mas com isso não querem dizer alguma coisa nem assustar ninguém. Fazem-no porque é essa a sua maneira de ser. Aquilo que precisam eles pegam. Não se pode afirmar que empreguem a violência. Ante a sua intervenção as pessoas se põem de lado e deixam tudo para eles.

Também das minhas provisões eles levaram uma boa parte. Mas não posso me queixar quando vejo por exemplo o que acontece ao açougueiro em frente. Mal ele traz as suas mercadorias, tudo já lhe foi tirado e engolido pelos nômades. Os cavalos deles também comem carne; muitas vezes um cavaleiro fica ao lado do seu cavalo e os dois se alimentam da mesma posta de carne, cada qual por uma extremidade. O açougueiro é medroso e não ousa acabar com o fornecimento. Mas nós entendemos o que se passa, recolhemos dinheiro e o ajudamos. Se os nômades não recebessem carne, quem é que sabe o que lhes ocorreria fazer? De qualquer maneira quem é que sabe o que lhes vai ocorrer ainda que recebam carne diariamente?

Não faz muito o açougueiro pensou que podia ao menos se poupar do esforço do abate e uma manhã trouxe um boi vivo. Isso não deve se repetir. Fiquei bem uma hora estendido no fundo da oficina com todas as roupas, cobertas e almofadas empilhadas em cima de mim para não ouvir os mugidos do boi que os nômades atacavam de todos os lados para arrancar com os dentes pedaços de sua carne quente. Quando me atrevi a sair já fazia silêncio há muito tempo; como bêbados em torno de um barril de vinho eles estavam deitados mortos de cansaço em torno dos restos do boi.

Justamente nessa época acreditei ter visto o imperador em pessoa numa janela do palácio; em geral ele nunca vem a esses aposentos externos, vive sempre no mais interno dos jardins; mas dessa vez, pelo menos assim me pareceu, ele estava em pé junto a uma das janelas olhando de cabeça baixa o movimento diante do seu castelo.

- O que irá acontecer - todos nós nos perguntamos. - Quanto tempo vamos suportar esse peso e tormento? O palácio imperial atraiu os nômades mas não é capaz de expulsá-los. Os portões permanecem fechados; a guarda, que antes entrava e saía marchando festivamente, mantém-se atrás das janelas gradeadas. A nós, artesãos e comerciantes, foi confiada a salvação da pátria; mas não estamos à altura de uma tarefa dessas, nem jamais nos vangloriamos de estar. É um equívoco e por causa dele vamos nos arruinar.


Tradução de MODESTO CARONE

Arquivos Folha de São Paulo

Um comentário:

  1. FRANZ KAFKA me faz lembrar de mensagens subliminar...
    Bacana, aparece mais vezes la no meu.

    abraços.

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