terça-feira, 24 de novembro de 2009

As flores



As flores
O escritor brasileiro Nelson Rodrigues estava condenado a solidao. Tinha
cara de sapo e lingua de serpente, e a seu prestigio de feio e sua fama de venenoso
somava-se a notoriedade de seu contagioso azar: as pessoas ao seu redor morriam
de tiro, miseria ou infelicidade fatal.
Certo dia, Nelson conheceu Eleonora. Naquele dia, dia do descobrimento,
quando pela primeira vez viu aquela mulher, uma violenta alegria atropelou-o e
deixou-o abobado. Entao, quis dizer alguma de suas frases brilhantes, mas as
pernas bambearam e a lingua se enrolou e nao conseguiu outra coisa a nao ser
gaguejar ruidinhos.
Bombardeou-a de flores. Mandava flores para o apartamento dela, no alto
de um edificio do Rio de Janeiro. A cada dia mandava um grande ramo de flores,
flores sempre diferentes, sem repetir jamais as cores ou aromas, e ficava esperando

la embaixo: la de baixo via a varanda de Eleonora, e da varanda ela atirava as flores
na rua, todos os dias, e os automoveis as esmagavam.
E foi assim durante cinquenta dias. Ate que um dia, um meio-dia, as
flores que Nelson enviou nao cairam na rua e nao foram pisadas pelos automoveis.
Naquele meio-dia, ele subiu ate o ultimo andar, apertou a campainha e a
porta se abriu.


Livro dos Abraços - Eduardo Galeano

As formigas



As formigas

Tracey Hill era menina num povoado de Connecticut, e se divertia com
diversoes proprias de sua idade, como qualquer outro doce anjinho de Deus no
estado de Connecticut ou em qualquer outro lugar deste planeta.
Um dia, junto a seus companheirinhos de escola, Tracey se pos a atirar
fosforos acesos num formigueiro. Todos desfrutaram muito daquele sadio
entretenimento infantil; Tracey, porem, ficou impressionada com uma coisa que os
outros nao viram, ou fizeram como se nao vissem, mas que deixou-a paralisada e
deixou nela, para sempre, um sinal na memoria: frente ao fogo, frente ao perigo, as
formigas separavam-se em casais e assim, de duas em duas, bem juntinhas,
esperavam a morte.


Livro dos Abraços - Eduardo Galeano

sábado, 7 de novembro de 2009

A única razão


A vida é uma grande incógnita...

Amar...

Fazer...

Criar...




Certeza?

Vida...

Morte...

Fé...




Caminhos obscuros...

Mas a luz é você.

Única certeza...Amar... Razão...Vida.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Fundação da beleza


Fundação da beleza
Estão ali, pintadas nas paredes e nos tetos das cavernas.


Estas figuras, bisões, alces, ursos, cavalos, águias, mulheres, homens, não têm idade. Nasceram há milhares e milhares de anos, mas nascem de novo a cada vez que alguém as olha.


Como eles conseguiram, nossos remotos avós, pintar de maneira tão delicada? Como eles conseguiram, esses brutos que de mão limpa lutavam contra as feras, criar figuras tão cheias de graça?Como eles conseguiram desenhar essas linhas voadoras que escapam da rocha e se vão para o ar? Como eles conseguiram …?


Ou seriam elas?


Eduardo Galeano - Le Monde Diplomatique

Fundação da poluição


Fundação da poluição
Os pigmeus, que têm corpo pequeno e memória grande, recordam os tempos de antes do tempo, quando a terra estava acima do céu.


Da terra caía sobre o céu uma chuva incessante de pó e de lixo, que sujava a casa dos deuses e lhes envenenava a comida.


Os deuses estavam, havia uma eternidade, suportando essa descarga sebosa, quando sua paciência acabou.


Enviaram um raio, que partiu a terra em dois. E através da terra aberta lançaram para alto o sol, a lua e as estrelas, e por esse caminho subiram eles também. E lá em cima, distante de nós, a salvo de nós, os deuses fundaram seu novo reino.


Desde então, estamos embaixo.

Eduardo Galeano - Le Monde Diplomatique

Anjos e crianças


Anjos e crianças
Não são poucos os poemas em que Bandeira aborda a infância como região idealizada, cuja simples rememoração pode amenizar o espaço presente da solidão, dor, perda, doenças e aporias que todo adulto precisa lidar [1]
Pedro Marques

(12/09/2008)

Estamos em 1936. A essa altura da carreira, o poeta possuía razoável reconhecimento. Neste ano de seu cinqüentenário sai o volume Homenagem a Manuel Bandeira, com trinta e três colaborações de escritores, intelectuais, jornalistas entre estudos, comentários, poemas e impressões sobre sua obra. A partir da segunda metade dos anos trinta, além dos versos e crônicas constantes na imprensa, passa a ser homem influente nas instituições de fomento ao ensino e à cultura. Em 1935, pelas mãos de Gustavo Capanema, é nomeado inspetor do ensino secundário; em 1938, professor de literatura do Colégio D. Pedro II e membro do Conselho Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1940, é eleito para Academia Brasileira de Letras. O final da década marca, ainda, o início das publicações voltadas aos estudos literários. Em 1937, sai a Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica; em 1938, a Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. A seleção e introdução concebidas aí por Bandeira são referências até hoje.

O prestígio artístico, intelectual e pessoal não se converte em engessamento de possibilidades poéticas. Bandeira, não estaciona no radicalismo modernista, sabe retomar e reelaborar modelos tradicionais presentes desde os dois primeiros livros. O conjunto de poemas que compõem Estrela da manhã (1936) retrata o processo. Há um número razoável de poemas metrificados no livro, cerca de dez; bastante, quando comparado a Libertinagem, em que havia cerca de três. Sua poesia, no mais, continua influente no contexto nacional, em meio à aparição de pesos como Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes.

Para Leônidas Câmara (1980, p. 168), neste livro, o sarcasmo e a ironia que os “anteriores utilizam com alguns disfarces, com uma boa dose de artifícios, surgem de corpo inteiro. Aqui o prosaico, o nada tradicionalmente poético ou o poético exaurido são materiais que o poeta utiliza na clara saída da poesia”. São muitos poemas a confirmar essa observação, embora o aproveitamento dos temas até então não poéticos ou prosaicos seja algo, a meu ver, decisivo desde O ritmo dissoluto e consolidado em Libertinagem. Pode acontecer ao leitor que leia de enfiada a obra de Bandeira do início, chegar em Estrela da manhã sem se surpreender com a expansão sobre os temas corriqueiros e, assim, veja-os despidos de “disfarce” ou “artifícios”.

O volume expõe pluralidade formal e temática. Há convivência entre verso livre, poema-prosa, redondilhas maiores e menores, etc. Poemas que falam de anjos, de amadas, de enterro, de paisagens citadinas, enfim, uma flora sortida. A diversidade é parte daquela característica de coletânea de seus livros. Suas publicações absorvem, inclusive, textos da época de outros volumes. Daí a dificuldade de eleger unidade rígida para qualquer um de seus livros, aparentados a painéis pouco lineares com algumas constantes de técnica, fundo e forma.

Continuam os cortes no cotidiano que, de certa maneira, viram sua assinatura. Os poemas em geral são curtos, alguns deles minúsculos, trazendo não raro apenas uma sacada ou flash, como o “Poema do Beco”. Às vezes, advém alguma linha narrativa precária que ora nos perde, ora nos acha nesse mosaico de assuntos cujas formalizações se refazem. Bandeira, como sempre, manobra formas fixas consagradas do gênero lírico, mesmo que só nos títulos das peças: “Canção das Duas Índias”, “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”, “Cantiga”, “Chanson des petits esclaves” e “Rondó dos cavalinhos”.

Região idealizada
“Sacha e o Poeta” é desses como que desentranhados do dia-a-dia. Desses instantâneos como se pululantes ao faro do poeta capaz de extrair poesia do corriqueiro. Mira de cronista viajante, observa dada realidade cotidiana e a recolhe como a coisa mais singular do mundo. Ao mesmo passo que nos soa familiar, o poema inclui novidade. O mote é simples: um poeta entra em folia com uma menina que mal aprendeu a balbuciar. Conta história, brinca de faz-de-conta, faz barulho com a boca prendendo a atenção de Sacha, até que ela toma a cena e submete o poeta a seus encantos. Os versos acabam movimentando uma das avenidas principais da poética bandeiriana: a infância que impregna os textos de nostalgia e de ternura. Em versos ou crônicas constantemente se entrelaçam elementos da infância pessoal e da observada.


Sacha e o Poeta

Quando o poeta aparece,
Sacha levanta os olhos claros,
Onde a surpresa é o sol que vai nascer.
O poeta a seguir diz coisas incríveis,
Desce ao fogo central da Terra,
Sobe na ponta mais alta das nuvens,
Faz gurugutu pif paf,
Dança de velho,
Vira Exu.
Sacha sorri como o primeiro arco-íris.

O poeta estende os braços, Sacha vem com ele.

A serenidade voltou de muito longe.
Que se passou do outro lado?
Sacha mediunizada
— Ah — pa — papapá — papá —
Transmite em Morse ao poeta
A última mensagem dos Anjos.

1931

(M. Bandeira, 1998, p. 156)

Como os quartos onde morou, Manuel Bandeira também representa sua mitologia infantil, vale dizer, seu próprio material biográfico. Totônio Rodrigues e Rosa, por exemplo, são meros personagens para quem lê “Evocação do Recife” ou “Profundamente”. Algo semelhante ocorre quando se apropria de fatos relativos à infância alheia, como a da Rua do Curvelo. O ambiente repleto de crianças age na sensibilidade do autor, que o poetiza por saudade de sua própria infância, por enxergar no mundo das crianças uma inesgotável fonte para sua produção em verso e em prosa. Na percepção de Ribeiro Couto (“No pórtico da Academia”, 2004, p. 65), a própria seqüência de cenas de “Na Rua do Sabão” teria inspiração nesse ambiente: “da vossa janela, olhando pelo morro abaixo os quintais da Rua Cassiano, vedes a garotada saltear com assobios e pedradas o balão”.

Há textos em prosa que assessoram a compreensão dos poemas que enfocam a infância. A sobreposição entre a prosa e a poesia, além de tudo, constitui riquíssima fonte de relações temáticas, permitindo refletir sobre as atuações do poeta e do cronista. Uma crônica em particular deve ser confrontada com “Sacha e o Poeta”. Um trecho de “A Trinca do Curvelo” (1966, p. 22), em que Bandeira oferece um rico apanhado da presença infantil nos arredores da ladeira do Curvelo:


Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo, – até de partir as vidraças das minhas janelas! Mentir é com eles. Contar vantagem nem se fala. Valentes até na hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar assassinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes.

Mais que a temática semelhante, o excerto situa a infância como época de felicidade, de pureza que cega as crianças das agruras da vida adulta. Não são poucos os poemas em que Bandeira aborda a infância como região idealizada, cuja simples rememoração pode amenizar o espaço presente da solidão, dor, perda, doenças e aporias que todo adulto precisa lidar. Em contraposição à maturidade, na tenra idade, aparecemos inconscientes para coisas desagradáveis. Em “O impossível carinho”, de Libertinagem, não é incidental que o eu lírico, “em troca de tanta felicidade” vinda da amada, confesse confrangido que a premiaria com “as mais puras alegrias de tua infância”.

Como no poema, em “A Trinca do Curvelo” a criança é associada aos anjos. Em outro trecho, quando relata a morte de um menino da trinca que falecera de sarampo, dirá: “... e lá se foi para a trinca dos anjinhos de Nosso Senhor!”. A correlação tradicional anjo / criança morta emerge, ainda que um pouco modificada, em outra peça de Estrela da manhã. Nos versos de “Jacqueline”, a criança parece em seu velório “mais bonita do que os anjos”. Assim, quando ouvimos Zé Kéti cantar “é mais um coração / que deixa de bater / um anjo vai pro céu”, no seu samba de protesto “Ascender as Velas” (1970), já imaginamos que a mortalidade infantil atacou mais uma vez no morro.

Em “Sacha e o Poeta” há um contraponto entre a condição de criança – aurora da vida, mensageira dos anjos, beleza pura –, com o ser poeta – aquele que consegue sugerir o inefável e, pelo empenho em recriar a língua, reveste-a sempre com o ar da novidade, de juventude, levando o leitor a uma experiência inesperada de linguagem.

Sacha com sua língua fragmentária, feita música mágica, transmite ao poeta algo que seria inatingível de outro modo. O poeta, que quis criar a novidade, abriu as lágrimas na menina. Mas Sacha não é vingativa, sendo pura, retribui com o etéreo, com a mensagem dos anjos. Proporciona ao poeta uma gota da própria infância dele, coloca-o em contato com o essencial do ser criança que um dia foi: criança como mensageira da ternura que no poema é também divina. Do confronto entre Sacha e o poeta, nós espectadores herdamos o conflito: a infância perdida para sempre e a saudade do único tempo em que fomos verdadeiramente felizes.

Referências


Bandeira, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro / São Paulo: Record / Altaya, 1998.


___. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro / São Paulo: Record / Altaya, 1997.


___. Os Reis vagabundos e mais 50 crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.


___. Poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1977.


Câmara, Leônidas. “A Poesia de Manuel Bandeira: seu revestimento ideológico e formal”, in Brayner, Sônia. (Org.). Manuel Bandeira / Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL / MEC, 1980.


Couto, Ribeiro. Três retratos de Manuel Bandeira. Introdução, cronologia e notas de Elvia Bezerra. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004.

Kéti, Zé. Zé Kéti. Rio de Janeiro: Itamaraty, 1970.


[1] Este artigo é um fragmento – especialmente preparado pelo autor para esta edição do Palavra – do livro Manuel Bandeira e a música: com três poemas visitados, que Pedro Marques lançou recentemente pela Editora Ateliê, em co-edição com a FAPESP.
Le Monde Diplomatique

terça-feira, 20 de outubro de 2009

30 mandamentos para ser leitor, escritor e crítico

Yiu Rojas



Decalógo do leitor

Por Alberto Mussa


I - Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer.

II - Comece a ler desde cedo, se puder. Ou pelo menos comece. E pelos clássicos, pelos consensuais. Serão cinqüenta, serão cem. Não devem faltar As mil e uma noites, Dostoiévski, Thomas Mann, Balzac, Adonias, Conrad, Jorge de Lima, Poe, García Márquez, Cervantes, Alencar, Camões, Dumas, Dante, Shakespeare, Wassermann, Melville, Flaubert, Graciliano, Borges, Tchekhov, Sófocles, Machado, Schnitzler, Carpentier, Calvino, Rosa, Eça, Perec, Roa Bastos, Onetti, Boccaccio, Jorge Amado, Benedetti, Pessoa, Kafka, Bioy Casares, Asturias, Callado,Rulfo, Nelson Rodrigues, Lorca, Homero, Lima Barreto, Cortázar, Goethe, Voltaire, Emily Brontë, Sade, Arregui, Verissimo, Bowles, Faulkner, Maupassant, Tolstói, Proust, Autran Dourado, Hugo, Zweig, Saer, Kadaré, Márai, Henry James, Castro Alves.

III - Nunca leia sem dicionário. Se estiver lendo deitado, ou num ônibus, ou na praia, ou em qualquer outra situação imprópria, anote as palavras que você não conhece, para consultar depois. Elas nunca são escritas por acaso.

IV - Perca menos tempo diante do computador, da televisão, dos jornais e crie um sistema de leitura, estabeleça metas. Se puder ler um livro por mês, dos 16 aos 75 anos, terá lido 720 livros. Se, no mês das férias, em vez de um, puder ler quatro, chegará nos 900. Com dois por mês, serão 1.440. À razão de um por semana, alcançará 3.120. Com a média ideal de três por semana, serão 9.360. Serão apenas 9.360. É importante escolher bem o que você vai ler.

V - Faça do livro um objeto pessoal, um objeto íntimo. Escreva nele; assinale as frases marcantes, as passagens que o emocionam. Também é importante criticar o autor, apontar falhas e inverossimilhanças. Anote telefones e endereços de pessoas proibidas, faça cálculos nas inúteis páginas finais. O livro é o mais interativo dos objetos. Você pode avançar e recuar, folheando, com mais comodidade e rapidez que mexendo em teclados ou cursores de tela. O livro vai com você ao banheiro e à cama. Vai com você de metrô, de ônibus, e de táxi. Vai com você para outros países. Há apenas duas regras básicas: use lápis; e não empreste.

VI - Não se deixe dominar pelo complexo de vira-lata. Leia muito, leia sempre a literatura brasileira. Ela está entre as grandes. Temos o maior escritor do século XIX, que foi Machado de Assis; e um dos cinco maiores do século XX, que foram Borges, Perec, Kafka, Bioy Casares e Guimarães Rosa. Temos um dos quatro maiores épicos ocidentais, que foram Homero, Dante, Camões e Jorge de Lima. E temos um dos três maiores dramaturgos de todos os tempos, que foram Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues.

VII - Na natureza, são as espécies muito adaptadas ao próprio hábitat que tendem mais rapidamente à extinção. Prefira a literatura brasileira, mas faça viagens regulares. Das letras européias e da América do Norte vem a maioria dos nossos grandes mestres. A literatura hispano-americana é simplesmente indispensável. Particularmente os argentinos. Mas busque também o diferente: há grandezas literárias na África e na Ásia. Impossível desconhecer Angola, Moçambique e Cabo Verde. Volte também ao passado: à Idade Média, ao mundo árabe, aos clássicos gregos e latinos. E não esqueça o Oriente; não esqueça que literatura nenhuma se compara às da Índia e às da China. E chegue, finalmente, às mitologias dos povos ágrafos, mergulhe na poesia selvagem. São eles que estão na origem disso tudo; é por causa deles que estamos aqui.

VIII - Tente evitar a repetição dos mesmos gêneros, dos mesmos temas, dos mesmos estilos, dos mesmos autores. A grande literatura está espalhada por romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Nenhum gênero é, em tese, superior a outro. Não se preocupe, aliás, com o conceito de gênero: história, filosofia, etnologia, memórias, viagens, reportagem, divulgação científica, auto-ajuda – tudo isso pode ser literatura. Um bom livro tem de ser inteligente, bem escrito e capaz de provocar alguma espécie de emoção.

IX - A vida tem outras coisas muito boas. Por isso, não tenha pena de abandonar pelo meio os livros desinteressantes. O leitor experiente desenvolve a capacidade de perceber logo, em no máximo 30 páginas, se um livro será bom ou mau. Só não diga que um livro é ruim antes de ler pelo menos algumas linhas: nada pode ser tão estúpido quanto o preconceito.

X - Forme seu próprio cânone. Se não gostar de um clássico, não se sinta menos inteligente. Não se intimide quando um especialista diz que determinado autor é um gênio, e que o livro do gênio é historicamente fundamental. O fato de uma obra ser ou não importante é problema que tange a críticos; talvez a escritores. Não leve nenhum deles a sério; não leve a literatura a sério; não leve a vida a sério. E faça o seu próprio decálogo: neste momento, você será um leitor.



Decálogo do autor

Por Miguel Sanches Neto


Depois de leitor, você pode se tornar, então, escritor– embora, pasme, muitos hoje pulem a leitura, por julgá-la dispensável, e já desejem publicar

I - Não fique mandando seus originais para todo mundo.Acontece que você escreve para ser lido extramuros, e deseja testar sua obra num terreno mais neutro. E não quer ficar a vida inteira escrevendo apenas para uma pessoa. O que fazer então para não virar um chato? No passado, eu aconselharia mandar os textos para jornais e revistas literárias, foi o que eu fiz quando era um iniciante bem iniciante. Mas os jovens agora têm uma arma mais democrática. Publicar na internet. Há muitos espaços coletivos, uma liberdade de inclusão de textos novos e você ainda pode criar seu próprio site ou blog, mas cuidado para não incomodar as pessoas, enviando mensagens e avisos para que leiam você.

II - Publique seus textos em sites e blogs e deixe que sigam o rumo deles. Depois de um tempo publicando eletronicamente, você vai encontrar alguns leitores. Terá de ler os textos deles, e dar opiniões e fazer sugestões, mas também receberá muitas dicas.

III - Leia os contemporâneos, até para saber onde é o seu lugar. Existe um batalhão de internautas ávidos por leitura e em alguns casos você atingirá o alvo e terá acontecido a magia de um texto encontrar a pessoa que o justifica. Mas todo texto escrito na internet sonha um dia virar livro. Sites e blogs são etapas, exercícios de aquecimento. Só o livro impresso dá status autoral. O que fazer quando eu tiver mais de dois gigas de textos literários? Está na hora de publicar um livro maior do que Em busca do tempo perdido? Bem, é nesse momento que você pode continuar sendo um escritor iniciante comum ou subir à categoria de iniciante com experiência. Você terá que reduzir essas centenas e centenas de páginas a um formato razoável, que não tome muito tempo de leitura de quem, eventualmente, se interessar por um livro de estréia. Para isso,
você terá de ser impiedoso, esquecer os elogios da mulher e dos amigos e selecionar seu produto, trabalhando duro para que fique sempre melhor.

IV - Considere apenas uma pequenina parte de toda a sua produção inicial, e invista na revisão dela, sabendo que revisar é cortar. O livro está pronto. Não tem mais do que 200 páginas, você dedicou anos a ele e ainda continua um iniciante. Mas um iniciante responsável, pois não mandou logo imprimir suas obras completas com não sei quantos tomos, logo você que talvez nem tenha completado 30 anos. Mas você quer fazer circular a sua literatura de maneira mais formal. Quer o livro impresso. E isso é hoje muito fácil. Você conhece um amigo que conhece uma gráfica digital que faz pequenas tiragens e parcela em tantas vezes. O livro está pronto. E anda sobrando um dinheirinho, é só economizar na cerveja.

V - Gaste todo seu dinheiro extra em cerveja, viagens, restaurantes e não pague a publicação do próprio livro. Se você fizer isso, ficará novamente ansioso para mandar a todo mundo o volume, esperando opiniões que vão comparar o seu trabalho ao dos mestres. O livro impresso, mesmo quando auto-impresso, dá esta sensação de poder. Somos enfim Autores. E podemos montar frases assim: Borges e eu valorizamos o universal. Do ponto de vista técnico, Borges e eu estamos no mesmo nível: produzimos obras impressas; mas a comparação não vai adiante. Então como publicar o primeiro livro se não conhecemos ninguém nas editoras? E aí começa um outro problema: procurar pessoas bem postas em editoras e solicitar apresentações. Na maioria das vezes isso não funciona. E, mesmo quando o livro é publicado, ele não acontece, pois foi um movimento artificial.

VI - Nunca peça a ninguém para indicar o seu livro a uma editora. Se por acaso um amigo conhece e gosta de seu trabalho, ele vai fazer isso naturalmente, com alguma chance de sucesso. Tente fazer tudo sozinho, como se não tivesse ninguém mais para ajudar você do que o seu próprio livro. Sim, este livro em que você colocou todas as suas fichas. E como você só pode contar com ele...

VII - Mande seu livro a todos os concursos possíveis e a editoras bem escolhidas, pois cada uma tem seu perfil editorial. É melhor gastar seu dinheiro com selos e fotocópias do que com a impressão de uma obra que não será distribuída e que terá de ser enviada a quem não a solicitou. Enquanto isso, dedique-se a atividades afins para controlar a ansiedade, porque essas coisas de literatura demoram, demoram muito mesmo. Você pode traduzir textos literários para consumo próprio ou para jornais e revistas, pode fazer resenhas de obras marcantes, ler os clássicos ou simplesmente manter um diário íntimo. O importante é se ocupar. Com sorte e tendo o livro alguma qualidade além de ter custado tanto esforço, ele acaba publicado. Até o meu terminou publicado, e foi quando me tornei um iniciante adulto. Tinha um livro de ficção no catálogo de uma grande editora. E aí tive de aprender outras coisas. Há centenas de livros de iniciantes chegando aos jornais e revistas para resenhas e uma quantidade muito maior de títulos consagrados. E a maioria vai ficar sem espaço nos jornais. E é natural que os exemplares distribuídos para a imprensa acabem nos sebos, pois não há resenhistas para tantas obras.

VIII - Não force os amigos e conhecidos a escrever sobre seu livro. Não quer dizer que eles não possam escrever, podem sim, mas mande o livro e, se eles não acusarem recebimento ou não comentarem mais o assunto, esqueça e não lhes queira mal, eles são nossos amigos mesmo não gostando do que escrevemos. Se um ou outro amigo escrever sobre o livro, festeje mesmo se ele não entender nada ou valorizar coisas que não julgamos relevantes em nosso trabalho. E mande umas palavras de agradecimento, pois você teve enfim uma apreciação. E se um amigo escrever mal de nosso livro, justamente dessa obra que nos custou tanto? Se for um desconhecido, ainda vá lá, mas um amigo, aquele amigo para quem você fez isso e aquilo.

IX - Nunca passe recibo às críticas negativas. Ao publicar você se torna uma pessoa pública. E deve absorver todas as opiniões, inclusive os elogios equivocados. Deixe que as opiniões se formem em torno de seu trabalho, e talvez a verdade suplante os equívocos, principalmente se a verdade for que nosso trabalho não é lá essas coisas. O livro está publicado, você já pensa no próximo, saíram algumas resenhas, umas superficiais, outras negativas, uma muito correta. Você é então um iniciante com um currículo mínimo. Daí você recebe a prestação de contas da editora, dizendo que, no primeiro trimestre, as devoluções foram maiores do que as vendas. Como isso é possível? Vejam quantos livros a editora mandou de cortesia. Eu não posso ter vendido apenas 238 exemplares se, só no lançamento, vendi 100, o gerente da livraria até elogiou – enfim uma vantagem de ter família grande.

X - Evite reclamar de sua editora. Uma editora não existe para reverenciar nosso talento a toda hora. É uma empresa que busca o lucro, que tem dezenas de autores iguais a nós e que quer ter lucro com nosso livro, sendo a primeira prejudicada quando ele não vende. Não precisamos dizer que é a melhor editora do mundo só porque nos editou, mas é bom pensar que ocorreu uma aposta conjunta e que não se alcançou o resultado esperado. Mas que há oportunidades para outras apostas e, um dia, quem sabe...Foi tentando seguir estas regras que consegui ser o autor iniciante que hoje eu sou.



Decálogo do crítico

Por Michel Laub


Ler por obrigação, ganhar pouco, ser odiado por autores criticados ou ignorados por você. Ante tantos dissabores, saiba para que serve, afinal, fazer crítica literária

I - Um bom começo pode ser a leitura de O imperador do vinho, de Elin McCoy, a biografia do americano Robert Parker. Trata-se da figura mais polêmica do universo milionário da enologia. Uma nota alta na The Wine Advocate, sua newsletter, é capaz de enriquecer um fabricante; uma nota baixa pode significar a falência. O olfato de Parker é segurado em cerca de US$ 1 milhão. Ao longo dos anos, percebeu-se que ele gostava de vinhos frutados. Muitas propriedades, até algumas tradicionais da França, passaram a chamar especialistas para estudar o solo, mudar a forma do plantio e da colheita, tudo para colher uvas que originassem vinhos adequados a esse gosto.

II - Saiba que esse talvez seja o exemplo máximo de crítico bem-sucedido no mundo de hoje – rico de fato, influente de fato, uma presença de fato essencial em seu meio. Quase todos os outros profissionais da categoria, trabalhem eles com música, cinema, gastronomia, televisão ou concursos de beleza, estão bem mais próximos da figura descrita por George Orwell em Confissões de um resenhista: “Trinta e cinco anos, mas aparenta cinqüenta(...) [trabalha num] conjugado frio, mas abafado (...). Dos milhares de livros que aparecem todo ano, é quase certo que existam 50 ou 100 sobre os quais teria prazer em escrever. Se for de primeira categoria na profissão, pode conseguir dez ou vinte. É mais provável que consiga dois ou três”.

III - Ou seja, prepare-se para uma atividade enfadonha e mal-remunerada. Você lerá só por obrigação. Nunca mais irá atrás de um livro indicado por um amigo. Nunca mais fechará um livro com a sensação de que, para o bem ou para o mal, não há nada a dizer sobre ele. Porque sempre haverá o que dizer. Se não houver, as contas não são pagas.

IV - Não se preocupe, porém. Há muitos truques para encher essas páginas em branco. Se você quer desancar um livro e não sabe como, recorra a alguns adjetivos algo abstratos em se tratando de literatura, mas ainda assim úteis numa resenha. A timidez, por exemplo. Argumente que o autor não explora suficientemente os conflitos de sua obra. Afinal, explorar conflitos é uma tarefa que não tem fim, e há um momento em que todo autor, por mais extrovertido que seja, precisa parar. Outros chavões sempre à mão: excesso de objetividade,excesso de subjetivismo, excesso de frieza, excesso de dramaticidade. A categoria das “idéias fora de lugar”, deslocada de seu contexto original, também ajuda bastante. Um romance correto, instigante e envolvente pode ser atacado por reproduzir um modelo “burguês” de contar histórias, incompatível com o nosso tempo. Um romance sem essas características pode ser destruído, justamente, por ser mal-escrito e não envolver o leitor.

V - Para o caso contrário, isto é, se você quer elogiar um livro que acha ruim – o das linhas finais do item IV, por exemplo –, há dois recursos clássicos: a) em relação à prosa desagradável, escatológica e/ou ilegível, diga que ela reproduz o incômodo e a irredutibilidade de sentidos do mundo contemporâneo; b) em relação à trama caótica e fragmentária, quando não se entende o que é início, o que é fim e do que é mesmo que estamos falando, afirme que a maçaroca reproduz, como uma “metáfora estrutural”, o caos fragmentário da sociedade pós-industrial.

VI - Usando desses truques, você está pronto para fazer nome devido à afinação com o vocabulário crítico de sua época. Mas se, por um desses acasos raros, você está decidido a realmente dizer o que pensa, há também dois caminhos a seguir. O primeiro é confiar cegamente nos seus juízos pessoais, não temendo a exposição de seus preconceitos íntimos em público. Assim, você terá mais chances de ser considerado um sujeito ranheta, excêntrico e/ou pervertido.

VII - O segundo caminho é considerar-se portavoz de um “sistema”, para o qual são válidas mesmo obras que não são do seu agrado (por questões sociológicas, por exemplo). Mesmo que os motivos sejam nobres – sua humildade para não se considerar o juiz definitivo sobre o que é ou não relevante em termos estéticos –, há boas probabilidades de você ser visto como um crítico sem alma, sem coragem, sem graça.

VIII - Independentemente de sua escolha, é inevitável que você seja desprezado. Todos dirão que seu desejo secreto era ser ficcionista ou poeta, que você é leviano demais, complacente demais, que tem algum interesse obscuro – ascender na carreira, agradar aos pares da universidade, arrumar um(a) namorado(a) – ou está a soldo de alguma entidade obscura – grupos literários rivais, editores, maçons, seitas religiosas, partidos políticos de esquerda (se você escrever numa pequena publicação) ou de direita (se receber salário de alguma corporação de mídia).

IX - Mais que isso: você será odiado. Pelos autores que você desanca. Pelos autores que você ignora. Pelos autores que você elogia (os motivos serão sempre os errados, na opinião deles). Pelos outros críticos. Por boa parte do público, mesmo por aquele que o lê com freqüência.

X - Mas se, apesar de tudo isso, você ainda insiste em abraçar a profissão, é bom se perguntar o motivo. Quando criança, usando o olfato, Robert Parker era capaz de listar todos os ingredientes dos pratos que estavam sendo cozinhados na vizinhança, habilidade que o tornaria um campeão absoluto dos “testes cegos” de identificação de uvas e safras. Isso se chama vocação. É o seu caso? Você se sente preparado para conjugar erudição e capacidade interpretativa em tamanha escala? Sendo a resposta afirmativa, trata-se de uma ótima notícia. Não só para você, que talvez tenha achado um modo honesto de ganhar a vida, mas para o próprio meio literário. Porque não há nada de que ele necessite mais, hoje ou em qualquer tempo: alguém que o ajude a firmar tendências, corrigir rumos, separar o joio do trigo. Diferentemente do que se diz, um crítico autêntico não é apenas o advogado do público. Ele é, em última instância, o maior defensor da própria literatura.

Revista Entre Livros