quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Poesia é ouvir vozes

Poesia é ouvir vozes
Em sua obra, o poeta Ferreira Gullar mostra que mesmo a notícia mais corriqueira pode ser transformada em expressão poética

Gabriel Perissé


Obra de Antonio Henrique Amaral, no livro Resmungos, de Ferreira Gullar e Antonio Henrique Amaral, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006
O poeta Ferreira Gullar (1930-) ouve vozes desde muito cedo. Desde sempre, a vida toda, e com essas vozes aprende. Um dos seus livros chama-se Muitas vozes (1999), porque de fato são muitas as que chegam aos seus ouvidos, provenientes das entranhas da realidade e do próprio poema:

[...] O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
- essa voz somos nós.

Afinar o ouvido para apreender essas vozes é detectar a humanidade, esperar uma fala, desejar o início de um diálogo. Em outro poema, escrito quando se encontrava preso em 1969 no Rio de Janeiro, em plena ditadura militar, o poeta ouvia coisas:

Ouço as árvores
lá fora
sob as nuvens

Ouço vozes
risos
uma porta que bate ("O prisioneiro", no livro Dentro da noite veloz)

Com o horizonte visual limitado, com sua liberdade física cerceada, o prisioneiro se liberta pela audição atenta, torna-se hipersensível aos ruídos e mensagens que venham de fora dar-lhe notícias sobre o mundo.

Barulhos e aprendizado
Além de vozes, barulhos. Barulhos são também vozes que nos falam. Não são vozes do Além, mas do aquém mesmo, vozes que estão ao nosso lado, ou atrás das paredes, ou debaixo do chão. Vozes embrulhadas, ruídos que dizem alguma coisa à sensibilidade, mas dependem do silêncio interior. Uma leitura educadora é sempre uma leitura silenciosa, na qual podemos escutar melhor, e aprender.

No poema "Aprendizado", do livro Barulhos (1987), Gullar faz uma descoberta lancinante. A alegria e o sofrimento são duas faces da mesma vida, dessa vida cheia de barulhos e ruídos. O poema, no entanto, cria um espaço de discernimento:

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Não é aprendizado fácil. O poeta exige de nós coerência máxima. Quer que abramos nossos ouvidos e nossa existência à realidade, em suas dimensões de riso e choro, sem ilusões ou alienações. Já antes, em Dentro da noite veloz (1975), no poema "A casa", ensinava que sob o assoalho da casa de sua infância, sob as tábuas velhas, havia algo ou alguém falando. De lá saía uma fala. Seriam os mortos a falar? Ou uma moeda que rolara e caíra ali embaixo e lá permaneceria para sempre, esquecida? Seriam as chuvas torrenciais? Seria a classe operária a falar?

Fala
talvez um rato
que nos ouvia de sob as tábuas
e conosco aprendeu a mentir
e amar

Se fosse um rato, excelente aluno ele teria sido. Aprendera com os homens que a convivência é tão ambígua quanto a própria vida. Se a vida é alegria e sofrimento indissociáveis entre si, a perigosa dupla mentir-amar constitui outra fonte de perplexidade. E a perplexidade inevitável, por sua vez, remete à lucidez. É outra dupla com que nos deparamos. Perplexo, sinto-me chamado a pensar com uma nova maturidade.

Poesia educadora
Quando ouvimos as vozes dissonantes e opostas da vida, ficamos perplexos, perdemos a segurança que julgávamos ter. Não seria a educação formal o caminho para eliminar essa confusão, dando-nos a certeza de que existe uma resposta única e verdadeira, capaz de acalmar nosso coração e nossa mente?

No discurso de abertura que fez ao 25º Congresso Mundial de Educação através da Arte, realizado no Rio de Janeiro, em 1983 (incluído em Indagações de hoje, de 1989), Gullar fez uma consideração assustadora e realista. A educação não se restringe mais (se é que algum dia se restringiu) aos espaços da família e da escola. Está em toda parte, sem projetos pedagógicos que lhe deem unidade; e em toda parte há educadores, a favor ou contra a nossa humanização:

A sociedade educa através dos programas de rádio, dos programas de televisão, dos jornais, dos livros, das revistas pornográficas, das histórias em quadrinhos, das empresas, da prática do esporte, dos assaltos à mão armada, da tortura dos prisioneiros políticos e dos presos comuns; das palavras dos pais e das ações dos pais. Cada indivíduo é um professor a serviço da sociedade ou contra ela, mas sempre em função dos valores estabelecidos.

A poesia educa também. Os poetas são antenas, radares, sensores vivos que captam todo tipo de informações desencontradas, e as transformam em palavras significativas. São escutadores profissionais da existência. Mesmo a notícia tão pedestre como a de um vestibulando que fugiu de casa ao saber do resultado negativo pode traduzir-se, se bem ouvida, em poema-carta, como de fato aconteceu no poema "Vestibular", ainda em Dentro da noite veloz.

O poeta conversa com Paulo Roberto Parreiras que, de raiva ou vergonha, sumiu de casa. Tanto ele estudou para passar no vestibular, tantos sacrifícios fez ao longo do ano letivo, tantas renúncias aos prazeres da adolescência, e mesmo assim foi reprovado. O poeta compreende sua tristeza, sua frustração, mas não pode lhe oferecer muito mais, além de uma palavra "de amigo desconhecido".

Contudo, é essa voz desconhecida ao desconhecido Paulo, voz que nasce de sob as tábuas do poema, é essa voz de poeta que pode, ao rapaz (e a nós), educar. Porque também nós somos reprovados em centenas de vestibulares, testes, provas e exames, reprovados pelos outros, pela sociedade, pelo destino:

Não sei pra onde você foi
nem o que pretende fazer
nem posso dizer que volte
para casa,
estude (mais?) e tente outra vez.
Não tenho nenhum poder,
nada posso assegurar.
Tudo que posso dizer-lhe
é que a gente não foge
da vida,
é que não adianta fugir.
Nem adianta endoidar.
Tudo o que posso dizer-lhe
é que você tem o direito de estudar.
É justa a sua revolta:
seu outro vestibular.

Revoltar-se contra a vida faz parte do jogo da vida. E o "outro vestibular" é mais do que outra prova para ingressar na faculdade. É outro pórtico, outra soleira - espaço perigoso que nos separa da vida, e à vida nos conduz.

Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP)
www.perisse.com.br

Revista Educação

3 comentários:

  1. Eduardo, que análise profunda! Estas "vozes" são os "ecos eternos" das vivências dos seres e de tudo que delas fazem parte. Abraço.

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  2. Obrigada pela postagem...de fato contribui com a difusão cultural a que o blog se propõe.
    Abraços...

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  3. Bela postagem! Adorei a forma com que descreve o aprendizado a partir das "vozes", e como é mestre e amigo o poeta!
    Obrigada.
    Esse texto me fez muito bem hj!

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