quinta-feira, 30 de julho de 2009

terça-feira, 21 de julho de 2009

A Origem dos nomes dos Meses e do Ano Bissexto

As mudanças nos calendários ao longo da história.
por José Augusto Carvalho*


No calendário de Rômulo, o primeiro rei de Roma e seu fundador, o ano começava em março e tinha dez meses, cujos nomes primitivos eram Martius (em homenagem ao deus da guerra, Marte), Aprilis (nome relacionado a Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril era dedicado); Majus (em homenagem à deusa Maia, uma das Atlântidas, amada de Júpiter e mãe de Mercúrio), Junius (em homenagem à deusa Juno, equivalente à deusa Hera dos gregos), Quintilis, Sextilis, September, October, November e December. A relação de aprilis com aperire (abrir) surgiu posteriormente, na vigência do calendário de Numa Pompílio, por ser abril o mês da primavera, em que "todas as coisas se abrem".

Numa Pompílio (circa 715-circa 672 a.C.), sucessor de Rômulo, querendo igualar a contagem do tempo romano à dos gregos e fenícios, reformou o calendário de Rômulo, instituindo os meses de Januarius (em homenagem ao deus Janus, protetor dos lares) e Februarius, do latim februus, adjetivo de primeira classe que significa "o que purifica, purificador". No mês de fevereiro, realizavam-se cerimônias de purificação, como sacrifícios expiatórios e os ritos de purificação chamados "lupercálias a". As lupercálias eram festas em homenagem a Pã, realizadas no dia 15 de fevereiro, em que jovens saíam nus da gruta Lupercália flagelando os transeuntes com um cinto de pele de cabra chamado também lupercal , considerado capaz de eliminar a esterilidade e provocar partos felizes.

Homenagens

Os meses Quintilis e Sextilis foram rebatizados com os nomes de julho e agosto, em homenagem aos dois primeiros dos doze césares: Julius (Júlio César) e Augustus. Para que julho e agosto tivessem o mesmo número de dias, subtraíram-se dois dias do mês de fevereiro. Repare que as festas de junho são juninas (de Juno), mas as festas de julho são julianas (de Júlio), e não "julhinas" ou "julinas", nomes que não existem.


O mês da mentira


A reforma que Carlos IX empreendeu na França em 1564 apenas obrigava os franceses a seguir o calendário juliano (com o ano começando a primeiro de janeiro). Até então, e desde Carlos Magno, era o calendário de Rômulo (com o ano começando a primeiro de março) que vigorava na França. O papa Gregório XIII, em 1582, realizou uma nova reforma, ao verificar que o calendário juliano havia incorrido num erro anual de 11 minutos e 8 segundos.

Desde o ano 44 a.C. até 1582, por causa desse erro, havia uma diferença de dez dias. Para compensar esses 10 dias e regularizar a contagem do tempo, o papa determinou que, ao dia 5 de outubro de 1582, deveria seguir-se o dia 15 de outubro, e não o dia 6. A reforma gregoriana causou confusão com as datas e as comemorações tradicionais - além de bagunçar a astrologia. O dia 21 de março corresponderia ao fim do signo de peixes.

A confusão de 10 dias fez crer que o dia primeiro de abril era ainda de peixes, isto é, o signo pularia dez dias para terminar no dia primeiro de abril. Em francês, a expressão poissons d'avril, isto é, peixes de abril, passou a designar as mentiras de primeiro de abril, porque até o nome abril, por engano, teria passado a ser considerado como o primeiro dia do ano, a abrir o ano. Da França, o dia dos enganos se estendeu ao resto do Ocidente.


Abril

Abril vem de aprilis, nome de um dos espíritos que seguiam o carro de Marte, deus da guerra, que deu nome ao mês de março. Assim, aprilis não se relaciona com abrir (latim: aperire), mas com o grego Apros ou Afros, designativo de Afrodite, nome grego da deusa Vênus, a quem abril era dedicado, ou com o sânscrito áparah, que significa "posterior" (aparentado com o gótico afar ou aftra, que significa "depois"), pois abril era o segundo mês do ano, no calendário civil de Rômulo (daí os nomes setembro, outubro, novembro e dezembro para os meses sete, oito, nove e dez, respectivamente).



Lupercálias

O nome "Luperca" designa a loba que amamentou os gêmeos Rômulo e Remo na gruta chamada Lupercal. Na realidade, "lupus", lobo, em latim, primitivamente, não tinha feminino. A loba-animal era "lupus femina". "Lupa" designava a cortesã, daí o nome "lupanar" para designar o prostíbulo. A "lupa" que amamentou os gêmeos era, na verdade, uma cortesã chamada Aca Laurentia ou Laurentina. Os sacerdotes romanos é que "purificaram" a origem de Roma, atribuindo à loba-animal a amamentação dos gêmeos que fundaram a cidade.

Lupercal

Lupercus se teria originado da justaposição de lupus (lobo) com hircus (bode), mas, como era outro nome de Pã, deus dos pastores e dos rebanhos, presume-se que lupercus signifique também "o que afasta o lobo".



Fasti

A palavra fasti (latim) se refere ao calendário romano e, especialmente, a um poema longo e provavelmente inacabado do poeta Ovídio sobre os festivais religiosos do ano romano e suas origens mitológicas. Na Roma Antiga, fasti era o plural do adjetivo fastus, derivado de fas, que significa o que é imposto ou permitido pela lei divina, em oposto a jus, a lei humana. Assim, fasti se tornou sinônimo dos dias em que a lei podia ser cumprida sem piedade - os nossos dias úteis; os dias opostos aos dies fasti eram os dies nefasti, nos quais, por motivos religiosos, a corte não podia se reunir.


A partir daqueles três nomes

O calendário romano tinha três datas com nome próprio: Kalendae ou Calendas (o primeiro dia de cada mês), Nonae ou Nonas (o dia 5 de todos os meses, exceto março, maio, julho e outubro, em que Nonae designava o dia 7) e Idus ou Idos (o dia 15 para aqueles quatro meses e o dia 13 para os outros meses). Os outros dias de cada mês eram citados a partir daqueles três nomes.

Em outras palavras, em lugar de numerar os dias em sequência crescente, como fazemos, os romanos preferiam numerar os dias usando as palavras Calendas, Nonas e Idos como pontos de referência. Para se ter uma ideia, a expressão "desde 3 de junho até 31 de agosto" se dizia em latim como "terceiro dia antes das nonas de junho até o primeiro das calendas de setembro" ("ante diem III Nonas Junias usque ad pridie Kalendas Septembres").

O dia 24 de fevereiro era chamado "o sexto das calendas de março". No nosso calendário, o gregoriano, no ano bissexto, temos um dia a mais, acrescentado ao último dia do mês de fevereiro. Mas, no calendário juliano, o dia a mais era acrescentado ao dia 24. Ou melhor: havia dois dias de número 24. Portanto, havia duas vezes o sextus dies (bis sextus) antes das calendas de março. Desses dois sextos é que se originou a expressão "ano bissexto".

Nas modificações efetuadas por Numa Pompílio no calendário de Rômulo, o ano civil tinha um erro de dez dias em relação ao ano solar. Ele tentou corrigir o erro acrescentando um mês de dez dias entre 23 e 24 de fevereiro. Mas essa solução trouxe tantos problemas que, em 44 a.C., Júlio César resolveu modificar novamente o calendário, dando ao ano a duração de 12 meses, ou 365 dias, de acordo com o calendário egípcio.

Foi um astrônomo de Alexandria, chamado Sosígenes, que descobriu que o ano civil tinha seis horas a menos que o ano solar. Assim, Roma instituiu que a cada quatro anos seria acrescentado um dia em fevereiro. Como vimos, o dia 24 de fevereiro era chamado "sexto das calendas". Com o dia adicional (acrescentado após o dia 24, com a mesma numeração), houve dois sextos (=bissexto) das calendas.

Revista Língua Portuguesa

domingo, 19 de julho de 2009

Aprender a ver

A poesia de Cassiano Ricardo nos ensina a enxergar a importância e o alcance da visão humana

Gabriel Perissé

Cena de Um cão andaluz, de Luis Buñel e Salvador Dali: marco do surrealismo


Afirmava o poeta Charles Baudelaire que poderia passar vários dias sem comer, mas não conseguiria viver 24 horas sem poesia. Nem todo mundo ousaria referendar essa afirmação. Afirmação metafórica, cuja verdade não literal é que a poesia alimenta nossa sensibilidade, fortalece nossa relação com a linguagem, aumenta nossa capacidade de compreender a condição humana.

Por amor à nossa saúde interior, deveríamos reservar alguns minutos do dia para ler os poetas. Saborear rimas, aliterações e outras brincadeiras sonoras. Mentar novas imagens. Embarcar em ritmos que nos façam caminhar de modo mais criativo na prosa cotidiana.

Poesia que seja uma fuga... para a realidade, para o mundo, fuga que nos torne mais atentos ao que nos rodeia. A poesia de Cassiano Ricardo (1895-1974) nos ensina a empreender essa fuga realista. Abre-nos caminhos verbais para ver melhor, para pensar e agir com maior radicalidade.

Saber pensar poeticamente consiste em descobrir, mediante o jogo da palavra, novos aspectos e matizes do jogo da vida. O pensamento poético é uma espécie de vidência. Os poetas, por não fazerem o jejum da palavra, por serem devoradores e criadores do verbo, podem ver e ajudar a ver. Não sem razão, muito já se comentou sobre a semelhança entre a atividade dos poetas e a dos profetas.

Nascemos para ver
Cassiano Ricardo nos ensina a ver. A ver o quê?
Em primeiro lugar, ver a importância e o alcance da visão humana. Podemos ver mais do que imaginamos. O nosso olhar pode penetrar regiões impensáveis.
No poema "Mulher recém-morta num desastre" (do livro Montanha-russa, de 1960), o atropelamento banal de uma mulher é muito mais do que um lamentável episódio urbano:

Ei-la, agora, em decúbito
dorsal, o antigo olhar
apagado, tão de súbito
que continua a olhar.

O olhar morto continua vivo, mas vendo outras coisas. O mundo de cá, as flores, as coisas pequenas que ela via, tudo isso que a rodeava também deixou de existir subitamente, porque...

Só existiu quem foi visto
por seus olhos vigentes.
Não quem chegou antes,
nem quem chegar depois.


O mundo daquela mulher deixou de existir no momento em que ela deixou de contemplá-lo, mas parece que passou a admirar outras paisagens. O poeta assiste à cena de modo ativo e criativo. A mulher recém-morta só continua viva porque ele recolhe aquela mulher em seus versos. No final, um operário se aproxima do corpo inerte, e com a mão suja de graxa fecha-lhe as pálpebras. O motivo desse gesto é revelado pelo poeta. O operário tem medo de ser visto:

Com medo de ser visto
por seus olhos, tão distantes
que pareciam estar vendo
algo jamais visto antes.

O olhar, mesmo perdido, denuncia que algo está sendo visto para além do visível. Nunca paramos de ver. Nascemos para ver. Morremos para ver.

Visão do mundo e de mundo
A visão faz a realidade ganhar qualidade, consistência e valor. A visão humana é sempre interpretativa. O olhar humano faz o mundo tornar-se humano.

Em outro poema, "ETC." (em Um dia depois do outro, de 1947), Cassiano já se referia à visão:

Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.

O poeta alude aos versos de outro poema, conhecido nas antologias escolares do seu tempo, "Esperança", no qual o autor, Vicente de Carvalho (1866-1924), ensina que a felicidade desejada, "Árvore milagrosa que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos, // Existe, sim; mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos". O mundo seria essa árvore que a todos se entrega, com seus frutos, frutos que nós próprios tornamos inalcançáveis. Embora seja este mundo o único lugar da felicidade possível, ele seria inútil sem a nossa visão.

Ver ativamente é criar uma visão do mundo e uma visão de mundo. Nesse mesmo poema "ETC.", uma outra morte se dá. Trata-se agora de um suicídio:

Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim... que foi? Um homem suicidou-se.

Mas não foi apenas um suicídio. Ele nos suprimiu, ao fechar seus olhos para o mundo:

Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.

Nossos sentidos não são meros sensores. Há neles mil possibilidades. Vendo, ultrapasso as simples informações sensoriais, dou ao que vejo existência significativa, finalidade, sentido. Não basta existir, é preciso existir para alguém, existir aos olhos de alguém.

Por isso, o suicida não se mata apenas. Ele nos mata! Ele inviabiliza nossa existência, ao dizer (sem falar) que nós não temos tanta importância assim. Que ele não nos quer ver mais. Que não somos tão relevantes assim. Se não houvesse relação viva entre os homens, um morto seria apenas uma coisa morta e muda. Tal morte não diria nada a ninguém. O fato de não termos mais, sobre nós, os olhos do suicida faz com que percamos valor e existência.

Olhar de mútua aprovação
O olhar como um fiat de aprovação. Um "faça-se". Um olhar acolhedor e criador. Se um homem se mata, comunica determinada avaliação do mundo, desaprova tudo o que o rodeia, nega, enfim, a possibilidade de dar sentido a esse mundo.

No campo do ensino, o olhar se antecipa ao falar. O olhar do professor dá existência ao aluno, pondo esse aluno onde nós estamos, diante de nós, ao nosso lado, e não em pesquisas e tratados distantes da realidade. O modo como o professor encara seu aluno, o que dele pensa, é fundamental. É o professor, com sua maneira de conceber a educação, o conhecimento, o livro didático, a sala de aula, é o professor quem confere ao aluno a chance de crescimento, de existência efetiva. Olhando o aluno, não como coisa inerte ou incômoda, mas como um ser destinado a aprender, o professor abre-lhe efetivamente caminhos de aprendizado.

A recíproca é verdadeira. A legitimidade do professor não procede tanto dos diplomas que conquistou, ou do tempo de vida profissional acumulado, mas do olhar que recebe de seus alunos. Olhando o professor com respeito (respectare, em latim, significa "olhar muitas vezes e com atenção", "levar em consideração"), o aluno reafirma-lhe a condição de educador.

Sem esse olhar de mútua aprovação, é impossível ensinar, é impossível aprender.

Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de mestrado/doutorado da Universidade Nove de Julho (SP); www.perisse.com.br

Revista Educação

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor


Do beliscão ao beijo: uma história dos gestos de amor
por Renato Pinto Venâncio
Memórias de um Sargento de Milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida, é um dos livros mais famosos e engraçados da literatura brasileira. Nele são contadas as aventuras e malandragens do filho de um casal português que, nas primeiras décadas do século 19, veio morar no Rio de Janeiro. O início do livro mostra como os pais do herói se conheceram: “estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de muitos anos.”

Por incrível que pareça, outros textos mostram que essa descrição não é pura invenção literária. No Portugal do século 18 – e, muito provavelmente, também no Brasil –, o beliscão, como expressão de amor, era bastante difundido. Havia até uma tipologia de beliscões, que variavam de acordo com as circunstâncias. Entre os recém-conhecidos, era de bom-tom beliscar “de pincho”, aplicando levemente a torção sobre a pele. Para os mais íntimos valia o beliscão “de estorcegão”, também conhecido como “enérgico”. A moda era tão corrente que houve quem discutisse a necessidade de construir divisórias no interior das igrejas para impedir belisquinhos e beliscões durante a missa.

Os estudiosos desse gesto associam-no ao “namoro camponês”. Beliscões, pisadas de pé e mútuos estalos de dedos consistiam em rituais que simbolizavam a dura vida rural. No universo camponês das sociedades pré-industriais, o domicílio familiar não significava somente local de vida social, mas também de produção de quase todos os bens do cotidiano. Do alimento às roupas, tudo era produzido pelo casal. Daí os rituais que simbolicamente avaliavam a resistência e força dos noivos.

Ao contrário do que se poderia imaginar, o gesto em nada tinha de sadismo ou maldade – ou não era compreendido dessa forma. Muito menos representava uma atitude machista, pois os beliscões eram compartilhados por homens e mulheres. Talvez a forma mais fácil de entender o que foge à nossa compreensão seja através do contraste com a marca ritual do namoro de nossos dias: o beijo. Tal gesto também tem uma longa história. Durante a Idade Média beijar era uma forma de reconhecer poder. Os nobres, por meio do beijo na boca, selavam pactos com seus vassalos. Aos poucos, trovadores medievais foram se apropriando desse gesto para expressar o amor. E ele passou a significar que, na relação amorosa, a mulher era a suserana e o homem, o vassalo; do pacto senhorial também foi copiado o beijo na mão da amada.

Toda essa tradição irá mudar no século 19, período marcado pela industrialização e urbanização, com o surgimento de novas classes sociais. Os burgueses e proletários dos novos tempos adotaram o “beijo” como forma de expressão do amor. Por quê? Ora, não é de se estranhar que as novas classes dominantes copiassem as atitudes refinadas das elites anteriores. Aliás, isso podia até ser prática, já que, desde fins do Antigo Regime, era comum a união entre homens burgueses e mulheres nobres.

Também conspirava a favor do “beijo” o fato de a família, no século 19, ter deixado de ser um local de produção para se tornar apenas um espaço de convívio social. Aos poucos, os casais refinaram seus rituais amorosos. Isso, com certeza, não ocorreu de uma hora para outra. Nem se difundiu simultaneamente em todas as regiões e grupos sociais. Tornar tais comportamentos um objeto de estudo revela um caso limite do conhecimento do passado: mesmo o gesto mais íntimo de nosso cotidiano, mesmo aquilo que ingenuamente acreditamos pertencer à “natureza humana” sofreu mudanças ao longo do tempo. Descobrir e interpretar essas transformações é fazer da história uma aventura.

Renato Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto e autor de Famílias Abandonadas, entre outros livros

Revista Aventuras na Historia

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A armadilha do tempo

Adaptação de conto da década de 20 enfoca o inexorável: a impossibilidade de escapar da castração da finitude
por Erane Paladino
Divulgação

O Curioso Caso de Benjamin Button - 166 minutos – Estados Unidos, 2008 - Direção: David Fincher- Com: Brad Pitt, Cate Blanchett e Julia Ormond

Agosto de 2005. A alguns minutos da chegada do furacão Katrina, uma senhora no leito de morte, em Nova Orleans, Estados Unidos, abre seu diário e seu coração para a filha, num relato que recupera mais de oitenta anos de amor e segredos. Este é o fio condutor da trama apresentada em O curioso caso de Benjamin Button, adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), lançado na década de 20. Com direção de David Fincher, em 2008, o filme parte da Primeira Guerra Mundial, nos idos de 1918, e chega ao início do século XXI.

Em seu depoimento, Daisy (Cate Blanchett) confessa seu amor por alguém incomum: um homem que nasce velho e rejuvenesce ao longo do tempo. Este é Benjamin Button. Abandonado recém-nascido e, por ironia do destino, criado num asilo, conhece-a ainda menina. Embora distantes por algum tempo, comunicam-se por cartas; Benjamin torna-se navegador e Daisy, bailarina de sucesso. Apesar dos universos e destinos diferentes, o tempo permite o encontro e os dois vivem uma história de amor, no ambiente cheio de esperanças dos anos 60.

Sob este prisma, o filme parece tratar de mais uma história comum, com amor, sofrimento e descobertas. Mas é nas sutilezas que mostra singularidade e poesia. Nesta tonalidade, a primeira lembrança confessada diz respeito a um relojoeiro quase cego, recomendado para fazer uma instalação na estação de trens. O inesperado ocorre na inauguração,quando todos vêem o relógio correr ao contrário. Para seu criador, era uma tentativa de fazer o tempo voltar e recuperar seu filho morto na guerra.

Benjamin é encantado pelo mar e pela força de seu Capitão Mike (Jared Harris). Apaixona-se por Daisy, mas vive passivamente este sentimento, enquanto a jovem vive intensamente. Envolve-se com a esposa de um diplomata que sonha (e realiza na velhice) atravessar a nado o canal da Mancha. A atitude do personagem sugere o ditado da sabedoria oriental, de placidez e complacência diante dos limites e circunstâncias. Suas restrições físicas, decepções amorosas e desafios não o levam à revolta. Nas diferentes situações, parece contemplativo, embora o mundo à sua volta fervilhe. Neste trecho da história, determinada pelo pós-guerra, pela revolução sexual e pela explosão de jovens atuantes, Button rejuvenesce a cada dia, embora seu olhar lembre resignação.

O contraste talvez repouse numa questão importante: embora os limites do tempo sejam intransponíveis, a vida é movimento e surpresa. Freud, em Além do princípio do prazer (1920), fala da luta entre as forças pulsionais de vida e de morte, movimento gerador de uma tensão inerente à condição humana. Como interagem a cada momento de prazer e relaxamento, uma nova força propulsora surge, gerando nova excitação, fruto da impossibilidade de satisfação ou do repouso absoluto, que seriam a morte. Quando se está vivo não caberá o definitivo, no campo das experiências e da vida psíquica. O desejo, então, depende da falta e de um sentimento de incompletude que, para a psicanálise, promove laços, desencontros, embates, paixões, a arte e, enfim, a cultura. De forma bem articulada, o enredo apresenta os momentos em que esperanças e frustrações seriam inevitáveis.

Como se perdoasse os altos e baixos dessa condição, Button é, ao mesmo tempo, protagonista e espectador, cercado por este mundo vibrante. Se não nos é possível escapar dos limites do tempo e da finitude, resta saborear as oportunidades oferecidas e contar com
a força vital. Essa configuração de vida, morte e transformação ganha sentido especial com a chegada do furacão Katrina, que invade com águas violentas a cidade – e a fábrica de relógios. Vale lembrar Mario Quintana “...porque o tempo é uma invenção da morte, não o conhece a vida verdadeira, em que basta um momento de poesia, para nos dar a eternidade inteira”.

Erane Paladino é psicóloga clínica, coordenadora e professora do Departamento de Psicodinâmica do Instituto Sedes Sapientiae, autora do livro O adolescente e o conflito de gerações na sociedade contemporânea (Casa do Psicólogo)

Revista Mente e Cérebro

A avareza na ficção

Balzac e Dostoievski, escritores consagrados do século XIX, viviam atolados em dívidas, não admira que ambos tenham criado personagens sovinas e egoístas
por Moacyr Scliar

THE NATIONAL MUSEUM OF THE PERFORMING ARTS, LONDRES

Sir Herbert Beerbohm Tree no papel de Shylock, em O mercador de Veneza, de Shakespeare, de 1914, por Charles Buchel

Embora muitos já tenham esquecido, o Brasil viveu períodos de grandes surtos inflacionários, nos quais o dinheiro perdia rapidamente o seu valor. Era muito comum ver moedas nas sarjetas das ruas; ali ficavam porque valiam tão pouco que ninguém se dava ao trabalho de abaixar-se para apanhá-las. Isso nos remete a um fato básico da economia e da vida social: a rigor, o dinheiro é uma ficção. Mas exatamente por causa desse ângulo, digamos, ficcional, ele assume também caráter altamente simbólico. E não muito agradável, segundo Freud. Observando que ao longo da história o dinheiro foi freqüentemente (e ainda é) associado à sujeira, o pai da psicanálise postulou que a proposital retenção de fezes, característica da chamada fase anal do desenvolvimento infantil, teria continuidade, no adulto, com a preocupação com o dinheiro. O avarento é um exemplo caricatural disso.

Aos escritores essas coisas não poderiam passar despercebidas, mesmo porque muitos deles tinham, e têm, problemas com dinheiro; Honoré de Balzac (1799-1850) e Fiódor Dostoievski (1821-1881) viviam atolados em dívidas, sobretudo o escritor russo, que era um jogador compulsivo. Não é de admirar que avarentos tenham dado grandes personagens da ficção. O primeiro exemplo é, naturalmente, o Shylock, de William Shakespeare (1564-1616) na comédia O mercador de Veneza, do fim do século XVI. Shylock era um agiota. Na Idade Média, o empréstimo a juros era proibido aos cristãos e reservado ao desprezado e marginal grupo dos judeus. Um arranjo perfeito: quando o senhor feudal não queria ou não podia pagar dívidas contraídas com os agiotas, desencadeava um massacre de judeus, um grupo desprezado e marginalizado, e resolvia o problema. Shylock sente-se desprezado e quando empresta dinheiro a Antonio, um mercador, pede em garantia uma libra da carne do devedor: ele quer que este se revele inadimplente e pague a dívida com a matéria de seu próprio corpo: um esforço desesperado e grotesco para ser respeitado.

Outro usurário que aparece na peça O avarento (1668), de Jean-Baptiste Molière (1622-1673) é Harpagon. Quanto mais rico fica, mais mesquinho se torna, e mais faz sofrer os filhos, o jovem Cléante, apaixonado por Mariane, moça pobre – Harpagon obviamente se opõe ao namoro – e a filha Élise, que ele quer casar com o velho Anselme. Além das brigas com os filhos, Harpagon tem outros motivos para se inquietar: enterrou em seu jardim uma caixa com dez mil escudos de ouro e é constantemente perseguido pela idéia de que sua fortuna será roubada. No fim, a avareza é castigada e Cléante e Élise podem se unir às pessoas que amam.

Avarentos também não faltam nos romances de Charles Dickens (1812-1870), um dos mais conhecidos é o personagem Ebenezer Scrooge de Um conto de Natal (1843), um homem velho, egoísta, insensível, que odeia tudo – até o Natal – uma festa que evoca bondade e generosidade. Scrooge maltrata seu empregado Bob Cratchit, que tem um filho deficiente físico, o Pequeno Tim, mas na noite de Natal é visitado por misteriosas entidades, os Espíritos do Natal, e muda por completo, tornando-se generoso, ajudando Cratchit e sua família. Em Silas Marner, novela de George Eliot (1819-1880) que usava o pseudônimo de Mary Ann Evans, o personagem, um misantropo que prefere o ouro às pessoas, aprenderá, assim como Scrooge, a sua lição. Ele é roubado, mas, ao tomar sob seus cuidados o menino Eppie, mudará, tornando-se um homem melhor. Em Eugénie Grandet (1900), de Balzac, somos apresentados a Félix Grandet, um rico e sovina mercador de vinhos, que se opõe à paixão da filha pelo sobrinho pobre.

Como se pode ver em todas essas obras, a obsessão pelo dinheiro resulta de uma personalidade repulsiva ou patética. Freud tinha razão: o poder simbólico do vil metal não é pequeno e tem atravessado os séculos incólume.

Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

Revista Mente e Cérebro

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Sérgio por ele mesmo


"Eu, Maria Amélia e nossos filhos sempre nos tratamos com igualdade, sem relações formais. E, principalmente, não conhecemos a mentira. Não impomos conceitos ou a nossa vontade. Para nós, a mesa nunca foi lugar sagrado de reuniões e nem temos datas de comemorações obrigatórias. Aqui, na casa dos Alvins e dos Buarques de Hollanda, cada um vive como quer e pode. O dinheiro e o sucesso não ocupam lugar em nossa escala de valores. Incentivamos tudo isso e assim demonstramos nossa amizade.
Quando eram crianças, assumíamos as atitudes deles para poder conviver, ensinar, brincar, pensar. Quando cresceram, demos apoio em todas as ocasiões. Essa é a chave da amizade entre os pais e seus filhos. É por isso que temos indivíduos capacitados a viver plenamente o seu tempo."
Sérgio Buarque de Holanda

Exposição da UNICAMP:
Sérgio por ele mesmo

Família
Depoimento à Revista Realidade, mar. 1974. p.38.