Márcia Naxara
Revista ARTCULTURA

Este blog tem por objetivo disponibilizar um pouco da cultura produzida nas diversas areas do conhecimento através da Literatura,Poesia, Cultura Popular,História, Geografia, Sociologia, Antropologia, Economia, Cinema, Artes, ciências, e afins. Será um desafio e um prazer compartilhar com outras pessoas minhas leituras. O homem começa a morrer na idade em que perde o entusiasmo. (Balzac)
Cena de Um cão andaluz, de Luis Buñel e Salvador Dali: marco do surrealismo
Afirmava o poeta Charles Baudelaire que poderia passar vários dias sem comer, mas não conseguiria viver 24 horas sem poesia. Nem todo mundo ousaria referendar essa afirmação. Afirmação metafórica, cuja verdade não literal é que a poesia alimenta nossa sensibilidade, fortalece nossa relação com a linguagem, aumenta nossa capacidade de compreender a condição humana.
Por amor à nossa saúde interior, deveríamos reservar alguns minutos do dia para ler os poetas. Saborear rimas, aliterações e outras brincadeiras sonoras. Mentar novas imagens. Embarcar em ritmos que nos façam caminhar de modo mais criativo na prosa cotidiana.
Poesia que seja uma fuga... para a realidade, para o mundo, fuga que nos torne mais atentos ao que nos rodeia. A poesia de Cassiano Ricardo (1895-1974) nos ensina a empreender essa fuga realista. Abre-nos caminhos verbais para ver melhor, para pensar e agir com maior radicalidade.
Saber pensar poeticamente consiste em descobrir, mediante o jogo da palavra, novos aspectos e matizes do jogo da vida. O pensamento poético é uma espécie de vidência. Os poetas, por não fazerem o jejum da palavra, por serem devoradores e criadores do verbo, podem ver e ajudar a ver. Não sem razão, muito já se comentou sobre a semelhança entre a atividade dos poetas e a dos profetas.
Nascemos para ver
Cassiano Ricardo nos ensina a ver. A ver o quê?
Em primeiro lugar, ver a importância e o alcance da visão humana. Podemos ver mais do que imaginamos. O nosso olhar pode penetrar regiões impensáveis.
No poema "Mulher recém-morta num desastre" (do livro Montanha-russa, de 1960), o atropelamento banal de uma mulher é muito mais do que um lamentável episódio urbano:
Ei-la, agora, em decúbito
dorsal, o antigo olhar
apagado, tão de súbito
que continua a olhar.
O olhar morto continua vivo, mas vendo outras coisas. O mundo de cá, as flores, as coisas pequenas que ela via, tudo isso que a rodeava também deixou de existir subitamente, porque...
Só existiu quem foi visto
por seus olhos vigentes.
Não quem chegou antes,
nem quem chegar depois.
O mundo daquela mulher deixou de existir no momento em que ela deixou de contemplá-lo, mas parece que passou a admirar outras paisagens. O poeta assiste à cena de modo ativo e criativo. A mulher recém-morta só continua viva porque ele recolhe aquela mulher em seus versos. No final, um operário se aproxima do corpo inerte, e com a mão suja de graxa fecha-lhe as pálpebras. O motivo desse gesto é revelado pelo poeta. O operário tem medo de ser visto:
Com medo de ser visto
por seus olhos, tão distantes
que pareciam estar vendo
algo jamais visto antes.
O olhar, mesmo perdido, denuncia que algo está sendo visto para além do visível. Nunca paramos de ver. Nascemos para ver. Morremos para ver.
Visão do mundo e de mundo
A visão faz a realidade ganhar qualidade, consistência e valor. A visão humana é sempre interpretativa. O olhar humano faz o mundo tornar-se humano.
Em outro poema, "ETC." (em Um dia depois do outro, de 1947), Cassiano já se referia à visão:
Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.
O poeta alude aos versos de outro poema, conhecido nas antologias escolares do seu tempo, "Esperança", no qual o autor, Vicente de Carvalho (1866-1924), ensina que a felicidade desejada, "Árvore milagrosa que sonhamos / Toda arreada de dourados pomos, // Existe, sim; mas nós não a alcançamos / Porque está sempre apenas onde a pomos / E nunca a pomos onde nós estamos". O mundo seria essa árvore que a todos se entrega, com seus frutos, frutos que nós próprios tornamos inalcançáveis. Embora seja este mundo o único lugar da felicidade possível, ele seria inútil sem a nossa visão.
Ver ativamente é criar uma visão do mundo e uma visão de mundo. Nesse mesmo poema "ETC.", uma outra morte se dá. Trata-se agora de um suicídio:
Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim... que foi? Um homem suicidou-se.
Mas não foi apenas um suicídio. Ele nos suprimiu, ao fechar seus olhos para o mundo:
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Nossos sentidos não são meros sensores. Há neles mil possibilidades. Vendo, ultrapasso as simples informações sensoriais, dou ao que vejo existência significativa, finalidade, sentido. Não basta existir, é preciso existir para alguém, existir aos olhos de alguém.
Por isso, o suicida não se mata apenas. Ele nos mata! Ele inviabiliza nossa existência, ao dizer (sem falar) que nós não temos tanta importância assim. Que ele não nos quer ver mais. Que não somos tão relevantes assim. Se não houvesse relação viva entre os homens, um morto seria apenas uma coisa morta e muda. Tal morte não diria nada a ninguém. O fato de não termos mais, sobre nós, os olhos do suicida faz com que percamos valor e existência.
Olhar de mútua aprovação
O olhar como um fiat de aprovação. Um "faça-se". Um olhar acolhedor e criador. Se um homem se mata, comunica determinada avaliação do mundo, desaprova tudo o que o rodeia, nega, enfim, a possibilidade de dar sentido a esse mundo.
No campo do ensino, o olhar se antecipa ao falar. O olhar do professor dá existência ao aluno, pondo esse aluno onde nós estamos, diante de nós, ao nosso lado, e não em pesquisas e tratados distantes da realidade. O modo como o professor encara seu aluno, o que dele pensa, é fundamental. É o professor, com sua maneira de conceber a educação, o conhecimento, o livro didático, a sala de aula, é o professor quem confere ao aluno a chance de crescimento, de existência efetiva. Olhando o aluno, não como coisa inerte ou incômoda, mas como um ser destinado a aprender, o professor abre-lhe efetivamente caminhos de aprendizado.
A recíproca é verdadeira. A legitimidade do professor não procede tanto dos diplomas que conquistou, ou do tempo de vida profissional acumulado, mas do olhar que recebe de seus alunos. Olhando o professor com respeito (respectare, em latim, significa "olhar muitas vezes e com atenção", "levar em consideração"), o aluno reafirma-lhe a condição de educador.
Sem esse olhar de mútua aprovação, é impossível ensinar, é impossível aprender.
Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de mestrado/doutorado da Universidade Nove de Julho (SP); www.perisse.com.br
Revista Educação
O Curioso Caso de Benjamin Button - 166 minutos – Estados Unidos, 2008 - Direção: David Fincher- Com: Brad Pitt, Cate Blanchett e Julia Ormond
Agosto de 2005. A alguns minutos da chegada do furacão Katrina, uma senhora no leito de morte, em Nova Orleans, Estados Unidos, abre seu diário e seu coração para a filha, num relato que recupera mais de oitenta anos de amor e segredos. Este é o fio condutor da trama apresentada em O curioso caso de Benjamin Button, adaptação do conto de F. Scott Fitzgerald (1896-1940), lançado na década de 20. Com direção de David Fincher, em 2008, o filme parte da Primeira Guerra Mundial, nos idos de 1918, e chega ao início do século XXI.
Em seu depoimento, Daisy (Cate Blanchett) confessa seu amor por alguém incomum: um homem que nasce velho e rejuvenesce ao longo do tempo. Este é Benjamin Button. Abandonado recém-nascido e, por ironia do destino, criado num asilo, conhece-a ainda menina. Embora distantes por algum tempo, comunicam-se por cartas; Benjamin torna-se navegador e Daisy, bailarina de sucesso. Apesar dos universos e destinos diferentes, o tempo permite o encontro e os dois vivem uma história de amor, no ambiente cheio de esperanças dos anos 60.
Sob este prisma, o filme parece tratar de mais uma história comum, com amor, sofrimento e descobertas. Mas é nas sutilezas que mostra singularidade e poesia. Nesta tonalidade, a primeira lembrança confessada diz respeito a um relojoeiro quase cego, recomendado para fazer uma instalação na estação de trens. O inesperado ocorre na inauguração,quando todos vêem o relógio correr ao contrário. Para seu criador, era uma tentativa de fazer o tempo voltar e recuperar seu filho morto na guerra.
Benjamin é encantado pelo mar e pela força de seu Capitão Mike (Jared Harris). Apaixona-se por Daisy, mas vive passivamente este sentimento, enquanto a jovem vive intensamente. Envolve-se com a esposa de um diplomata que sonha (e realiza na velhice) atravessar a nado o canal da Mancha. A atitude do personagem sugere o ditado da sabedoria oriental, de placidez e complacência diante dos limites e circunstâncias. Suas restrições físicas, decepções amorosas e desafios não o levam à revolta. Nas diferentes situações, parece contemplativo, embora o mundo à sua volta fervilhe. Neste trecho da história, determinada pelo pós-guerra, pela revolução sexual e pela explosão de jovens atuantes, Button rejuvenesce a cada dia, embora seu olhar lembre resignação.
O contraste talvez repouse numa questão importante: embora os limites do tempo sejam intransponíveis, a vida é movimento e surpresa. Freud, em Além do princípio do prazer (1920), fala da luta entre as forças pulsionais de vida e de morte, movimento gerador de uma tensão inerente à condição humana. Como interagem a cada momento de prazer e relaxamento, uma nova força propulsora surge, gerando nova excitação, fruto da impossibilidade de satisfação ou do repouso absoluto, que seriam a morte. Quando se está vivo não caberá o definitivo, no campo das experiências e da vida psíquica. O desejo, então, depende da falta e de um sentimento de incompletude que, para a psicanálise, promove laços, desencontros, embates, paixões, a arte e, enfim, a cultura. De forma bem articulada, o enredo apresenta os momentos em que esperanças e frustrações seriam inevitáveis.
Como se perdoasse os altos e baixos dessa condição, Button é, ao mesmo tempo, protagonista e espectador, cercado por este mundo vibrante. Se não nos é possível escapar dos limites do tempo e da finitude, resta saborear as oportunidades oferecidas e contar com
a força vital. Essa configuração de vida, morte e transformação ganha sentido especial com a chegada do furacão Katrina, que invade com águas violentas a cidade – e a fábrica de relógios. Vale lembrar Mario Quintana “...porque o tempo é uma invenção da morte, não o conhece a vida verdadeira, em que basta um momento de poesia, para nos dar a eternidade inteira”.
Erane Paladino é psicóloga clínica, coordenadora e professora do Departamento de Psicodinâmica do Instituto Sedes Sapientiae, autora do livro O adolescente e o conflito de gerações na sociedade contemporânea (Casa do Psicólogo)
Revista Mente e Cérebro
Sir Herbert Beerbohm Tree no papel de Shylock, em O mercador de Veneza, de Shakespeare, de 1914, por Charles Buchel
Embora muitos já tenham esquecido, o Brasil viveu períodos de grandes surtos inflacionários, nos quais o dinheiro perdia rapidamente o seu valor. Era muito comum ver moedas nas sarjetas das ruas; ali ficavam porque valiam tão pouco que ninguém se dava ao trabalho de abaixar-se para apanhá-las. Isso nos remete a um fato básico da economia e da vida social: a rigor, o dinheiro é uma ficção. Mas exatamente por causa desse ângulo, digamos, ficcional, ele assume também caráter altamente simbólico. E não muito agradável, segundo Freud. Observando que ao longo da história o dinheiro foi freqüentemente (e ainda é) associado à sujeira, o pai da psicanálise postulou que a proposital retenção de fezes, característica da chamada fase anal do desenvolvimento infantil, teria continuidade, no adulto, com a preocupação com o dinheiro. O avarento é um exemplo caricatural disso.
Aos escritores essas coisas não poderiam passar despercebidas, mesmo porque muitos deles tinham, e têm, problemas com dinheiro; Honoré de Balzac (1799-1850) e Fiódor Dostoievski (1821-1881) viviam atolados em dívidas, sobretudo o escritor russo, que era um jogador compulsivo. Não é de admirar que avarentos tenham dado grandes personagens da ficção. O primeiro exemplo é, naturalmente, o Shylock, de William Shakespeare (1564-1616) na comédia O mercador de Veneza, do fim do século XVI. Shylock era um agiota. Na Idade Média, o empréstimo a juros era proibido aos cristãos e reservado ao desprezado e marginal grupo dos judeus. Um arranjo perfeito: quando o senhor feudal não queria ou não podia pagar dívidas contraídas com os agiotas, desencadeava um massacre de judeus, um grupo desprezado e marginalizado, e resolvia o problema. Shylock sente-se desprezado e quando empresta dinheiro a Antonio, um mercador, pede em garantia uma libra da carne do devedor: ele quer que este se revele inadimplente e pague a dívida com a matéria de seu próprio corpo: um esforço desesperado e grotesco para ser respeitado.
Outro usurário que aparece na peça O avarento (1668), de Jean-Baptiste Molière (1622-1673) é Harpagon. Quanto mais rico fica, mais mesquinho se torna, e mais faz sofrer os filhos, o jovem Cléante, apaixonado por Mariane, moça pobre – Harpagon obviamente se opõe ao namoro – e a filha Élise, que ele quer casar com o velho Anselme. Além das brigas com os filhos, Harpagon tem outros motivos para se inquietar: enterrou em seu jardim uma caixa com dez mil escudos de ouro e é constantemente perseguido pela idéia de que sua fortuna será roubada. No fim, a avareza é castigada e Cléante e Élise podem se unir às pessoas que amam.
Avarentos também não faltam nos romances de Charles Dickens (1812-1870), um dos mais conhecidos é o personagem Ebenezer Scrooge de Um conto de Natal (1843), um homem velho, egoísta, insensível, que odeia tudo – até o Natal – uma festa que evoca bondade e generosidade. Scrooge maltrata seu empregado Bob Cratchit, que tem um filho deficiente físico, o Pequeno Tim, mas na noite de Natal é visitado por misteriosas entidades, os Espíritos do Natal, e muda por completo, tornando-se generoso, ajudando Cratchit e sua família. Em Silas Marner, novela de George Eliot (1819-1880) que usava o pseudônimo de Mary Ann Evans, o personagem, um misantropo que prefere o ouro às pessoas, aprenderá, assim como Scrooge, a sua lição. Ele é roubado, mas, ao tomar sob seus cuidados o menino Eppie, mudará, tornando-se um homem melhor. Em Eugénie Grandet (1900), de Balzac, somos apresentados a Félix Grandet, um rico e sovina mercador de vinhos, que se opõe à paixão da filha pelo sobrinho pobre.
Como se pode ver em todas essas obras, a obsessão pelo dinheiro resulta de uma personalidade repulsiva ou patética. Freud tinha razão: o poder simbólico do vil metal não é pequeno e tem atravessado os séculos incólume.
Moacyr Scliar é médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.
Revista Mente e Cérebro