sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Carta de um soldado

BILHETE ENCONTRADO NO BOLSO DA FARDA DE UM SOLDADO DESCONHECIDO, MORTO NA SEGUNDA GRANDE GUERRA, NO PRIMEIRO ATAQUE À MONTE CASTELO.

" Escuta Deus,
Jamais falei contigo.
Hoje quero saudar-te-: Bom dia! Como vais?
Sabes? Disseram que tu não existe e eu, tolo, acreditei que era verdade.
Nunca havia reparado tua obra.
Ontem à noite da trincheira rasgada por granadas, vi teu céu estrelado e compreendi então que me enganaram.
Não sei se apertarás minha mão .Vou te explicar e hás de compreender.
É engraçado: neste inferno hediondo achei a luz para enxergar teu rosto.
Dito isto já não tenho muita coisa a te contar.
Só que... que... tenho muito prazer em conhecer-te.
Fazemos um ataque à meia noite.
Não tenho medo.
Deus, sei que tu velas...
Ah! É o clarim! Bom Deus, devo ir-me embora.
Gostei de ti, vou ter saudade.
Quero dizer, será cruenta a luta, bem o sabes, e esta noite pode ser que eu vá bate a tua porta!
Muito amigos não fomos é verdade.
Mas sim... estou chorando! Vê Deus, penso que já não sou tão mau.
Bom Deus, tenho que ir. Sorte é coisa bem rara.
Juro porém que já não receio a morte... "
http://forum.hardmob.com.br/archive/index.php/t-103780.html

O Último Discurso - o Grande Ditador

Charles Chaplin
Desculpe!
Não é esse o meu ofício.
Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja.
Gostaria de ajudar - se possível -
judeus, o gentio ... negros ... brancos.
Todos nós desejamos ajudar uns aos outros.
Os seres humanos são assim.
Desejamos viver para a felicidade do próximo -
não para o seu infortúnio.
Por que havemos de odiar ou desprezar uns aos outros?
Neste mundo há espaço para todos.
A terra, que é boa e rica,
pode prover todas as nossas necessidades.
O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos.
A cobiça envenenou a alma do homem ...
levantou no mundo as muralhas do ódio ...
e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios.
Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela.
A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis.
Pensamos em demasia e sentimos bem pouco.
Mais do que máquinas, precisamos de humanidade.
Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura.
Sem essas duas virtudes,
a vida será de violência e tudo será perdido.
A aviação e o rádio aproximaram-se muito mais. A próxima natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem ... um apelo à fraternidade universal ... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhões de pessoas pelo mundo afora ... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas ... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes.
Aos que me podem ouvir eu digo: "Não desespereis!" A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia ... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano.
Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo.
E assim, enquanto morrem os homens,
a liberdade nunca perecerá.
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais ... que vos desprezam ... que vos escravizam ... que arregimentam as vossas vidas ... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como um gado humano e que vos utilizam como carne para canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar ... os que não se fazem amar e os inumanos.
Soldados! Não batalheis pela escravidão! lutai pela liberdade!
No décimo sétimo capítulo de São Lucas é escrito que o Reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou um grupo de homens, mas dos homens todos! Estás em vós!
Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas.
O poder de criar felicidade!
Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela ...
de fazê-la uma aventura maravilhosa.
Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo ...
um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho,
que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós.
Soldados, em nome da democracia, unamo-nos.
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontres, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergues os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança.
Ergue os olhos, Hannah!
Ergue os olhos!

Assombrações da mula-sem-cabeça

Revista de História da Biblioteca Nacional

“Burrinha-de-padre”, “mula preta”, “mula-sem-cabeça”. Os nomes variam de acordo com a região do Brasil, mas o significado é o mesmo: o castigo para a mulher que namora padre é transformar-se, nas noites de quinta para sexta-feira, em um animal medonho, de cascos afiados, que cospe fogo pelo pescoço e solta relinchos apavorantes. De origem ibérica, a lenda surgiu na Idade Média, por volta do século XII, quando as mulas eram usadas pelos padres como montarias. Dóceis e fisicamente próximas dos vigários, as “mulas-de-padre” passaram a designar as próprias mancebas. A Igreja, temendo o poder de sedução feminino, alimentava a crença na existência de maldições para as mulheres que desejassem o santo padre, fiel representante de Cristo na Terra. A lenda tem, portanto, uma explicação moral religiosa. O animal, que na imaginação popular galopa em desatino pela mata sem a cabeça, representaria a mulher que perdeu a razão e que apenas segue seus impulsos emocionais e sexuais. Se alguém suspeitar que está sendo perseguido por uma mula-sem-cabeça, deve deitar de bruços no chão, escondendo unhas e dentes, para não atrair a ira do bicho. Para quebrar o encantamento, é preciso que o padre, antes da celebração de cada missa, amaldiçoe a amante. Ou que um corajoso arranque o cabresto da fera. Alguém aí se arrisca?

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Bertolt Brecht – Elogio da Dialética


A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.

Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.

Só a força os garante.

Tudo ficará como está.

Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.

No mercado da exploração se diz em voz alta:

Agora acaba de começar.

E entre os oprimidos muitos dizem:

Não se realizará jamais o que queremos!

O que ainda vive não diga: jamais!

O seguro não é seguro. Como está não ficará.

Quando os dominadores falarem

falarão também os dominados

Quem se atreve a dizer: jamais!

De quem depende a sua destruição?

Igualmente de nós.

Os caídos que se levantem!

Os que estão perdidos que lutem!

Quem reconhece a situação como pode calar-se?

Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.

E o “hoje” nascerá do “jamais”

Em defesa da escrita - Eduardo Galeano


Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo dentro da cabeça da gente: “ Vale a pena escrever? Será que que as palavras sobreviverão em meio aos adeuses e aos crimes? Tem sentido este ofício que a gente escolheu - ou pelo qual a gente foi escolhido?"
As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e de comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimentos, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas com cuja a sorte ou má sorte se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; que em geral nem sabe ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantos dispõem de dinheiro para comprar livros?
Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema da fome e das cadeias - visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?
A gente escreve para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem, por dentro; mas aquilo que a gente escreve só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade. Ao dizer "Sou assim" e assim me oferecer, acho que gostaria de, como escritor, poder ajudar muitas pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. Entretanto, na América Latina, o acesso aos produtos de arte e de cultura está vedado à imensa maioria das pessoas.

A obra nasce da consciência ferida do escritor e se projeta ao mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade.
Acredito no meu ofício; creio no meu instrumento. Nunca pude entender por que escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entenderos que convertem a palavra e, alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.
Crio que uma função primordial da literatura latino-americana atual consiste em resgatar a palavra, que usada e abusada com impunidade e frequência, para impedir ou atraiçoar a comunicação. Liberdade é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se democracia a vários regimes de terror; a palavra amor define a relação do homem com seu automóvel; por revolução se entende aquilo que um novo detergente pode fazer em sua cozinha; felicidade é uma sensação que se tem ao comer salsichas. País em paz significa, em muitos lugares da América Latina, cemitério em ordem; e onde se diz homem são deveria se ler muitas vezes homem impotente.
Ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa gente, para agora e para depois, apesar da persiguição e e da censura. Pode-se escrever como se dizendo, de certa maneira: "estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim fomos". Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literaturaque ajuda os demais a dormir; antes tira-lhes o sono; que não se propõe enterrar os nossos mortos; antes, quer perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca procura acender o fogo.
Essa literatura continua e enriquece uma formidável tradição de palavrasque lutam. Se é melhor - como cremos - a esperança à nostalgia, talvez essa literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais que mudarão radicalmente o curso de nossa história - mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. e quem sabe ajude a guardar, para os jovens que virão, o "verdadeiro nome de cada coisa" - como dizia o poeta. (vozes e crônicas - Eduardo Galeano)

Revista Informação Pedagógica

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Uma Carta Para Maria

Foto: Jornal do Brasil

O sociólogo gostava de dizer que sua condição de soropositivo o forçava a “comemorar a vida todas as manhãs”.
Carta escrita por Herbert de Souza (o Betinho) para sua mulher Maria.
"Este texto é para Maria ler depois da minha morte que, segundo meus cálculos, não deve demorar muito. É uma declaração de amor.

Não tenho pressa em morrer, assim como não tenho pressa em terminar esta carta. Vou voltar a ela quantas vezes puder e trabalhar com carinho e cuidado cada palavra. Uma carta para Maria tem que ter todos os cuidados. Não quero triste, quero fazer dela também um pedaço de vida pela via de lembrança que é a nossa eternidade. Nos conhecemos nas reuniões de AP (Ação Popular), em 1970, em pleno Maoísmo. Havia uma clima de sectarismo e medo nada propício para o amor.

Antes de me aventurar andei fazendo umas sondagens e os sinais eram animadores, apesar de misteriosos. Mas tínhamos que começar o namoro de alguma forma. Foi no ônibus da Vila das Belezas, em São Paulo. Saímos em direção ao fim da linha como quem busca um começo. E aí veio o primeiro beijo, sem jeito, espremido, mas gostoso, um beijo público. A barreira da distância estava rompida para dar começo a uma relação que já completou 26 anos!

O Maoísmo estava na China, nosso amor na São João. Era muito mais forte que qualquer ideologia. Era a vida em nós, tão sacrificada na clandestinidade sem sentido e sem futuro. Fomos viver em um quarto e cozinha, minúsculos, nos fundos de uma casa pobre, perto da Igreja da Penha. No lugar cabia nossa cama, uma mesinha, coisas de cozinha e nada mais. Mas como fizemos amor naquele tempo! Foi incrível e seguramente nunca tivemos tanto prazer.

Tempos de chumbo, de medo, de susto e insegurança. Medo de dia, amor de noite. Assim vivemos por quase um ano. Até que tudo começou a "cair". Prisões, torturas, polícia por toda a parte, o inferno na nossa frente. Fomos para o Chile. E ali, chamado por Garcez para
elaborar textos, acabei no agrado de Allende, que os usou em seus discursos oficiais. Foi a primeira vez que eu vi amor virar discurso politico... Depois passamos por muita coisa até voltar. Até que a anistia chegou e nos surpreendeu. E agora, o que fazer com o Brasil?
Foi um turbilhão de emoções: o sonho virou realidade! Era verdade, o Brasil era nosso de novo. A primeira coisa foi comer tudo que não havíamos comido no exílio: angu! com galinha ao molho pardo, quiabo com carne moída, chuchu com maxixe, abóbora, cozido, feijoada. Um
festival de saudades culinárias, um reencontro com o Brasil pela boca.

Uma das maiores emoções da minha vida foi ver o Henrique surgindo de dentro de você. Emoção sem fim e sem limite que me fez reencontrar a infância.

Depois do exílio, nossas vidas pareciam bem normais. Trabalhávamos; viajávamos nas férias, visitávamos os amigos, o Ibase funcionava, até a hemofilia parecia que havia dado uma trégua. Henrique crescia, Daniel aos poucos se reaproximava de mim, já como filho e amigo.

Mas como uma tragédia que vem às cegas e entra pelas nossas vidas, estávamos diante do que nunca esperei. A Aids. Em 1985, surge a notícia da epidemia que atingia homossexuais, drogados e hemofílicos. O pânico foi geral. Eu, é claro, havia entrado nessa. Não bastava ter nascido mineiro, católico, hemofílico, maoísta e meio deficiente físico.

Era necessário entrar na onda mundial, na praga do século, mortal, definitiva, sem cura, sem futuro e fatal. E foi aí que você, mais do que nunca, revelou que é capaz de superar a tragédia, sofrendo, mas enfrentando tudo e com um grande carinho e cuidado. A Aids selou um
amor mais forte e mais definitivo porque desafia tudo, o medo, a tentação do desespero, o desânimo diante do futuro. Continuar tudo apesar de tudo, o beijo, o carinho e a sensualidade.

Assumi publicamente minha condição de soropositivo e você me acompanhou. Nunca pôs um "senão" ou um comentário sobre cuidados necessários. Deu a mão e seguiu junto como se fosse metade de mim, inseparável. E foi. Desde os tempos do cólera, da não esperança, da morte do Henfil e Chico, passando pelas crises que beiravam a morte até o coquetel que reabria as esperanças. Tempo curto para descrever, mas uma eternidade para se viver.

Um dos maiores problemas da Aids é o sexo. Ter relações com todos os cuidados ou não ter? Todos os cuidados são suficientes ou não se deve correr riscos com a pessoa amada? Passamos por todas as fases, desde o sexo com uma ou duas camisinhas até sexo nenhum, só carinho. Preferi a segurança total ao mínimo risco.

Parei, paramos e sem dramas, com carências, mas sem dramas, como se fosse normal viver contrariando tudo que aprendemos como homem e mulher, vivendo a sensualidade da música, da boa comida, da literatura, da invenção, dos pequenos prazeres e da paz. Viver é muito mais que fazer sexo. Mas para se viver isso, é necessário que Maria também sinta assim e seja capaz dessa metamorfose como foi.

Para se falar de uma pessoa com total liberdade é necessário que uma esteja morta e eu sei que este será o meu caso. Irei ao meu enterro sem grandes penas e principalmente sem trabalho, carregado. Não tenho curiosidade para saber quando, mas sei que não demora muito.
Quero morrer em paz, na cama, sem dor, com Maria do meu lado e sem muitos amigos, porque a morte não é ocasião para se chorar, mas para celebrar um fim, uma história. Tenho muita pena das pessoas que morrem sozinhas ou mal acompanhadas, é morrer muitas vezes em uma só. Morrer sem o outro é partir sozinho. O olhar do outro é que te faz viver e descansar em paz. O ideal é que pudesse morrer na minha cama e sem dor, tomando um saquê gelado, um bom vinho português ou uma cerveja gelada.

Te amo para sempre,

Betinho,

Itatiaia, janeiro de 1997"

Extraída do "Jornal da Orla" de Santos, SP, ao dia 24 janeiro 1999.

"Temos sociólogos bons e medíocres. Uns acabam professores, outros presidentes da República" (Herbert de Souza, sociólogo)

ABC do Sertão

A diversidade cultural do povo retratada de forma simples na letra da música de Luiz Gonzaga.
ABC do Sertão
Luíz Gonzaga
Composição: Zé Dantas / Luiz Gonzaga

Lá no meu sertão pros caboclo lê
Têm que aprender um outro ABC
O jota é ji, o éle é lê
O ésse é si, mas o érre
Tem nome de rê
Até o ypsilon lá é pissilone
O eme é mê, O ene é nê
O efe é fê, o gê chama-se guê
Na escola é engraçado ouvir-se tanto "ê"
A, bê, cê, dê,
Fê, guê, lê, mê,
Nê, pê, quê, rê,
Tê, vê e zê.

Poesia nas músicas de Luiz Gonzaga

Luís Gonzaga do Nascimento, conhecido também como "O Rei do Baião", foi uma das mais completas e inventivas figuras da música popular brasileira. Cantando acompanhado de sanfona, zabumba e triângulo, levou a alegria e a sexualidade das festas juninas e dos forrós de-pé-de-serra, bem como a pobreza, as tristezas e as injustiças de sua árida terra, o sertão nordestino, para o resto do país, numa época em que a maioria das pessoas desconhecia o baião, o xote e o xaxado. Admirado por grandes músicos, como Gilberto Gil e Caetano Veloso, o genial instrumentista e sofisticado inventor de melodia e harmonias, ganhou notoriedade com as antológicas canções Baião (1946), Asa Branca (1947), Siridó (1948), Juazeiro (1948), Qui Nem Giló (1949) e Baião de Dois (1950). Nascido em Exu, interior de Pernambuco, filho do sanfoneiro seu Januário, o melhor sanfoneiro do sertão pernambucano, a quem tantas vezes homenageou, trabalhou na roça e animou os bailes da região com sua sanfona. Partiu para o Sul do país, em 1939, depois de ingressar no Exército e percorrer com o batalhão terras paraibanas, mineiras (onde conheceu o famoso sanfoneiro Domingos Ambrósio, que lhe ensinou mais sobre música) e paulistas. No Rio de Janeiro, deu baixa, disposto a ganhar a vida com a música. Freqüentou inicialmente os prostíbulos da zona do Mangue, tocando valsas, tangos e polcas. Em 1941, foi contratado no programa de calouros de Ari Barroso, na Rádio Nacional, gravando, nos primeiros tempos, muita música instrumental e tentando encontrar um novo caminho no linguajar rural, compondo toadas. Em parceria com Humberto Teixeira, fez o baião virar moda. Em 1946, a música de ambos intitulada justamente Baião explodiu no mercado musical. A canção apresenta o gênero, com uma letra que é um convite ao também novo ritmo de dança: "Eu vou mostrar pra vocês/Como se dança o baião/E quem quiser aprender/É favor prestar atenção/Morena chegue pra cá/Bem junto ao meu coração/Agora é só seguir/Pois eu vou dançar o baião". http://netsaber.com.br/biografias


O xote das meninas retrata de forma poética a passagem da infância para a adolescência no sertão nordestino. Essa região, caracterizada pelos graves problemas sociais, insiste em mostrar ao Brasil os caminhos possíveis através da esperança representadas no povo, na música e no mandacaru.

Flor de Mandacaru


Xote das Meninas
Luíz Gonzaga
Composição: Luiz Gonzaga / Zé Dantas


Mandacaru
Quando fulora na seca
É o siná que a chuva chega
No sertão
Toda menina que enjôa
Da boneca
É siná que o amor
Já chegou no coração...

Meia comprida
Não quer mais sapato baixo
Vestido bem cintado
Não quer mais vestir de mão...

Ela só quer
Só pensa em namorar
Ela só quer
Só pensa em namorar...

De manhã cedo já tá pintada
Só vive suspirando
Sonhando acordada
O pai leva ao dotô
A filha adoentada
Não come, nem estuda
Não dorme, não quer nada...

Ela só quer
Só pensa em namorar
Ela só quer
Só pensa em namorar...

Mas o dotô nem examina
Chamando o pai do lado
Lhe diz logo em surdina
Que o mal é da idade
Que prá tal menina
Não tem um só remédio
Em toda medicina...

Ela só quer
Só pensa em namorar
Ela só quer
Só pensa em namorar...

Mandacaru
Quando fulora na seca
É o sinal que a chuva chega
No sertão
Toda menina que enjôa
Da boneca
É sinal que o amor
Já chegou no coração...

Meia comprida
Não quer mais sapato baixo
Vestido bem cintado
Não quer mais vestir de mão...

Ela só quer
Só pensa em namorar
Ela só quer
Só pensa em namorar...

De manhã cedo já está pintada
Só vive suspirando
Sonhando acordada
O pai leva ao doutor
A filha adoentada
Não come, num estuda
Num dorme, num quer nada...

Porque ela só quer, hum!
Porque ela só quer
Só pensa em namorar...

Mas o doutô nem examina
Chamando o pai do lado
Lhe diz logo em surdina
Que o mal é da idade
E que prá tal menina
Não tem um só remédio
Em toda medicina...

Porque ela só quer, oh!
Mas porque ela só quer, ai!
Mas porque ela só quer
Oi, oi, oi!
Ela só quer
Só pensa em namorar
Mas porque ela só quer
Só pensa em namorar
Ela só quer
Só pensa em namorar...

sábado, 24 de janeiro de 2009

A arte de ser feliz

--------------------------------------------------------------------------------

Houve um tempo em que minha janela se abria sobre uma cidade que parecia ser feita de giz. Perto da janela havia um pequeno jardim quase seco.

Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto. Mas todas as manhãs vinha um pobre com um balde e, em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas. Não era uma regra: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse. E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. Outras vezes encontro nuvens espessas. Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar. Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. Às vezes, um galo canta. Às vezes um avião passa. Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz.

Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que as coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para vê-las assim."

"A arte de ser feliz"
Cecília Meireles

Todos em guerra contra Gaia - Leonardo Boff

6/1/2009
Todos em guerra contra Gaia
O cataclismo econômico-financeiro, fruto de avidez e de mentiras, esconde uma via-sacra de sofrimento para milhões de pessoas que perderam suas economias, suas casas e seus postos de trabalho. Quem fala deles? Os verdadeiros culpados se reúnem mais para salvaguardar ou corrigir o sistema que lhes garante hegemonia sobre os demais atores do que para encontrar caminhos com características de racionalidade, cooperação e compaixão para com as vítimas e para com toda a humanidade.

Esta crise traz à luz outras crises que, quais espadas de Dâmocles, estão pesando sobre a cabeça de todos: a climática, a energética, a alimentária e outras. Todas elas remetem para a crise do paradigma dominante. A situação de caos generalizado suscita questões metafísicas sobre o sentido do ser humano no conjunto dos seres em evolução. Neste momento silenciam os pós-modernos com o seu every thing goes. Queiram eles ou não, há coisas que têm que valer, há sentidos que devem ser preservados, caso contrário enchafurdamos no mais reles cinismo, expressão de profundo desprezo pela vida.

Já há tempos que pensadores como Teilhard de Chardin ou René Girard notaram certo excesso de maldade no caminho da evolução consciente. Cito um pensamento de Girard, estudioso da violência, quando esteve entre nós em 1990 dialogando com teólogos da libertação: “Tudo parece provar que as forças geradoras da violência neste mundo, por razões misteriosas que eu tento compreender, num certo nível são mais poderosas que a harmonia e a unidade. Este é o aspecto sempre presente do pecado original, enquanto, para além de qualquer concepção mítica, representa um nome para a violência na história”. Não há por que rejeitar este sombrio veredito. Somente o pensamento da esperança contra toda a esperança, da compaixão e da utopia nos oferece um pouco de luz.

Mesmo assim, há que conviver com a sombra de que somos seres com imensa capacidade de autodestruição, até o último homem. Há anos uma pesquisa alemã sobre as guerras na história da humanidade, citada por Michel Serres em seu último livro Guerre mondiale (2008), chegava aos seguintes dados: de três mil anos antes de nossa era até o presente momento, três bilhões e oitocentos milhões de seres humanos teriam sido chacinados, muitos deles em guerras de total extermínio. Só no século XX foram mortas duzentos milhões de pessoas. Como não se questionar, honestamente, sobre a natureza deste ser complexo, contraditório, anjo bom e satã da Terra que é o ser humano?

Hoje vivemos uma situação absolutamente inédita. É a guerra coletiva contra Gaia. Até a introdução da guerra total por Hitler (totaler Krieg), as guerras possuíam seu ritual: eram entre exércitos. Depois passaram a ser entre nações e entre povos: era a guerra de todos contra todos. Hoje ela se radicalizou: é a guerra de todos contra o mundo, contra o planeta Gaia (bellum omnium contra Terram). Pois é isso que está implicado em nosso paradigma civilizacional que se propôs explorar e sugar, com violência tecnológica, a totalidade dos recursos do planeta Terra. Com efeito, atacamos a Terra em todas as suas frentes, nos solos, nos subsolos, nos ares, nas florestas, nas águas, nos oceanos, no espaço exterior. Qual é o canto da Terra que não seja objeto de conquista e de dominação por parte do ser humano?

Há feridas e sangue por todas as partes, sangue e feridas de nossa Mãe Terra. Ela geme e se contorce nos terremotos, nos tsunamis, nos ciclones, nas enchentes devastadoras em Santa Catarina e nas secas terrificantes do Nordeste. São sinais que ela nos está enviando. Cabe interpretá-los e mudar a nossa conduta. Esta guerra não será ganha por nós. Gaia é paciente e com capacidade imensa de agüentar. Como fez com tantas outras espécies no passado, oxalá não decida livrar-se da nossa, nas próximas gerações.

Não nos basta o sonho do filósofo Kant da paz perpétua entre todos os povos. Precisamos com urgência fazer um pacto de paz perene de todos com a Terra. Já a atormentamos demasiadamente. Importa pensar-lhe as feridas e cuidar de sua saúde. Só então, Terra e Humanidade, teremos um destino minimamente garantido.

Leonardo Boff nasceu em Concórdia, Santa Catarina. Cursou Filosofia em Curitiba-PR e Teologia em Petrópolis-RJ. Doutorou-se em Teologia e Filosofia na Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Durante 22 anos, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petrópolis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de professor-visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espanha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heilderberg (Alemanha). Em 8 de Dezembro de 2001 foi agraciado com o premio nobel alternativo em Estocolmo (Right Livelihood Award). Em 1984, em razão de suas teses ligadas à Teologia da Libertação, apresentadas no livro "Igreja: Carisma e Poder", foi submetido a um processo pela Sagrada Congregação para a Defesa da Fé, ex Santo Ofício, no Vaticano. Em 1985, foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso" e deposto de todas as suas funções editoriais e de magistério no campo religioso. Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986, podendo retomar algumas de suas atividades. Em 1992, sendo de novo ameaçado com uma segunda punição pelas autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre e se auto-promoveu ao estado leigo. É autor de mais de 60 livros nas áreas de Teologia, Espiritualidade, Filosofia, Antropologia e Mística.
Site: www.leonardoboff.com
www.cronopios.com.br

Monteiro Lobato - Pai da literatura infantil brasileira

Pai da literatura infantil
brasileira, o autor deixou
muitos livros e saudades

O dia 18 de abril foi dedicado ao livro nacional infantil. Por uma razão simples e significativa: naquele dia nasceu em Taubaté, interior paulista, o maior nome da literatura infantil brasileira: José Bento de Monteiro Lobato.

Monteiro Lobato veio ao mundo em 1882. Com 18 anos, ingressou na faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, começando a participar de grupos e jornais literários. Retornou à sua terra natal aos 22 anos, logo após diplomar-se. Foi nomeado promotor público de Areias, interior paulista, onde se dedicou também a traduções.

É muito difícil encontrar um brasileiro que não tenha ao menos ouvido falar em Monteiro Lobato, ou que não tenha acompanhado pela televisão alguns inesquecíveis capítulos de OSítio do Picapau Amarelo. A história narra as travessuras da Narizinho, seu irmão Pedrinho, Visconde de Sabugosa, dona Benta, tia Anastácia e Emília, a boneca de pano que era uma personificação perfeita de seu criador.

A extensa obra de Lobato representa o seu amor pelo Brasil e os bons motivos que o levaram a tornar-se um homem público, ferrenho inimigo dos maus políticos. A carta endereçada ao presidente Getúlio Vargas, insistindo no fato de que o Brasil tinha petróleo e que os benefícios de sua industrialização e comércio deveriam ser revertidos em melhorias ao povo brasileiro, causou-lhe perseguições implacáveis por parte do governo.

A briga pelo petróleo foi dolorosa para o escritor. Getúlio Vargas não acreditou e mandou prender Lobato. No cárcere, o pai de Narizinho recebeu a solidariedade de centenas de pessoas que vinham visitálo e dizer-lhe que foi uma injustiça a
sua reclusão.

O universo infantil
Bárbara Vasconcelos de Carvalho enfatiza que a obra de Lobato é a mais abrangente, original e rica da literatura infanto-juvenil brasileira. A estudiosa derruba a muralha da parcialidade, tão sugestiva na opinião de alguns teóricos.

Segundo ela, Lobato não teria feito uma perfeita fusão entre pedagogia e fantasia e muito menos recriava seus contos a partir da obra de outros autores, como acusaram alguns críticos. Ele teria, sim, inventado todo um universo para os pequenos, tendo em vista que sua inspiração foi a própria criança, sua vivência, seus sonhos e seus brinquedos.

O DONO DO SÍTIO

O leitor mirim tinha toda liberdade para ser criança. O Sítio do Picapau Amarelo era cenário da brincadeira e do aprendizado, da beleza e da poesia, temperado com uma atmosfera mítica e real de um mundo exclusivo e colorido feito para o encanto próprio das crianças.

O “ofensor” na obra lobatiana é a estupidez, o desconhecimento, contra os quais as personagens do sítio lutam em conjunto com o intuito de alcançar os bons valores que poderão ser conquistados pelos perseverantes e destemidos, haja vista que a infância não é “uma fase de estágio mental, mas uma inteligência em desenvolvimento”. A obra de Lobato motiva as crianças à pesquisa, ao conhecimento, à curiosidade, que são canais de desenvolvimento mental.

Lobato não subestimou a capacidade delas, nem as empurrou para o desinteresse. A obra lobatiana remete a criança à auto-realização, dando a oportunidade de descobrir por si só o significado das palavras (consultando o dicionário) e a pesquisar em livros de História as personagens tão marcantes que visitaram o sítio.

No dia 4 de julho de 1948, um acidente vascular cerebral fez o
Brasil chorar a morte desse escritor que dedicou sua vida à literatura infantil. Milhares de pessoas estiveram no cemitério da Consolação para dar adeus ao criador de O Sítio do Picapau Amarelo.

A estrela maior da literatura infanto-juvenil tem seu posto cativo no coração de cada criança que “mora” dentro de nós. Que o tempo não furte a magia e a beleza da sua obra, tão próxima dos nossos mais nobres sonhos.

Andersen Medeiros é escritor, professor e coordenador do projeto cultural ônibusbiblioteca Casa de Anani, da Secretaria de Desenvolvimento da Educação do município de Ananindeua (PA).

Revista Discutindo Literatura

Vinicius de Moraes


VINICIUS
O POETA QUE TUDO VIVEU E TUDO SENTIU

A chama
A poesia de Vinicius de Moraes uiva para a lua. Sua voz tremula como um véu transparecendo o homem. Em seus poemas, doçuras e horrores brincam de roda em torno do amor infinito que ele vivia enquanto duravam suas escrituras. Vinicius não poetava, confessava em versos; e seu perceber o mundo e vivenciá-lo era de tal modo lírico que redundava em poemas.
Ele veio ao mundo em 1913, trazido nas asas de uma tempestade de primavera. Chegou feio e magrinho.

Seus ancestrais, ligados à literatura e à música, foram certamente o rascunho daquele que deixaria uma obra sólida nas duas artes.

É bem possível que já o tenham dito (eu juro que nunca li ou ouvi), mas, considerando a obra do autor como um todo, fica-me a impressão forte de que ele amou o amor. Todas suas nove esposas e as namoradas eventuais foram espelhos em que se projetou, com maior ou menor nitidez, o amor ardente que ele trazia dentro de si. Quando o reflexo esfriava, o amor continuava ardendo, então ele carecia urgentemente de outro espelho, precisava contemplar o amor. Suas musas foram o papel branco e macio em que Vinicius pintou o retrato de Eros com as mais distintas vestes. Ele foi um homem que tinha uma absoluta e maiúscula necessidade de viver sob o estado revolucionário da paixão. Entenda-se que o fato de amar o amor não anula a legitimidade de seus sentimentos pelas mulheres com quem se relacionou. Elas foram agentes detonadores do sentimento amoroso por méritos próprios e singulares. Cada uma delas foi uma face de percepção amorosa. Foram amantes, namoradas, noivas, esposas, mães e, afinal, amigas em que seu ser inquieto repousou. Quanto ao poeta, creio que foi, sobretudo, filho.

Sua poesia começou quando ele tinha nove anos e se apaixonou por uma menina de onze, Cacy. Dedicou-lhe um poema singelo que ela guardaria para sempre. Depois veio Veda; depois Marina, provavelmente seu primeiro beijo. Aos quinze conheceu o sexo com Rosário, uma mulata de origem simples, cinco anos mais velha que ele. Já na Faculdade de Direito, teve breve interesse por Sara, mas logo foi arrebatado pela primeira grande paixão: Antônia.

Casou-se duas vezes com Tati, e com ela teve Suzana e Pedro. Entre os dois casamentos com Tati, viveu outra breve união com Regina Pederneiras. Depois desposou Lila, com quem teve duas meninas: Georgiana e Luciana. Sua quarta mulher foi Maria Lúcia Proença, com quem viveu cerca de dois anos e muitas recaídas que ela nunca aceitou. Aos cinqüenta anos, apaixonou-se por Nelita, de vinte. Em 1968, casou-se com Cristina Gurjão, e com ela teve Maria, sua última filha. Depois dessa relação breve e tumultuada, foi a vez da baiana Gesse Gessy. Ela o iniciou no candomblé e o levou a conhecer Mãe Menininha do Gantois. Foi por meio dela também que tomou contato com o movimento hippie e com a contracultura, bem como com a herança afro-brasileira. Em 1976, uniu-se à argentina Marta Rodriguez Santa Maria, também poeta. E, finalmente, Gilda Matoso, sua última companheira.

Esse amor plural de Vinicius de Moraes estendia-se aos amigos, familiares e à alegria. Ele foi escravo da alegria, sabia onde obtê-la, como despertá-la no outro. Foi seu amante inconteste. Privou da alegria de centenas de noites varadas com amantes e amigos, fazendo amor, poesia e canções; de noites prenhes de excepcionalidades que ele soube cultivar; de sustos bons; de descarrilamento das expectativas do outro, feito por meio do elemento surpresa, como um carro cheio de flores; passagens aéreas compradas em surdina para ter a amada diante de si; pratos especiais feitos de madrugada, poemas irresistíveis; canções que eram crônicas de amor.

O fato é: Vinicius de Moraes sabia afetar uma mulher. Ele amava como um cavalheiro que tira alguém para dançar num salão do final do século XIX. Amava como um príncipe doce e perverso que rouba donzelas. Como uma serpente sensual de pele incoerentemente cálida. Sabia fazer, em especial no início de suas relações, com que sua parceira fosse interlocutora, cúmplice. Assim, contracenava com ela, embevecido dos efeitos lisérgicos da paixão. Sua existência foi uma sucessão de idílios costurada pela vida de diplomata e de boêmio. Triunfou o boêmio: a partir de dado momento, ele pôde ganhar a vida criando, viajando, cantando, sempre acompanhado do uísque, considerado por ele o "cão engarrafado", o melhor amigo do homem. Todo o resto veio a reboque, já que ele pertence a uma numerosa geração de intelectuais dados a veleidades literárias.

Vinicius é uma interação sem fim de teias e teias de relacionamentos. Se fossem somente as mulheres, seria mais fácil concatená-las, mas não. São súditos, amigos, irmãos, parceiros, melhores amigos em cada estado ou cidade, conhecidos episódicos de uísque e de conversa, um inferno de gentes.

Quando se encara o Vinicius de Moraes, sujeito histórico, já morto, fica difícil apagar sua existência, ele ainda parece estar por perto. Sua humanidade transbordava em gestos e palavras, muitas vezes rudes, que desandavam em machismo vulgar, num lapso inconsciente de homem inseguro; também numa tristeza crônica que o fazia dependente químico da alegria. Ela o sustentava como a um doente que depende de morfina para fazer cessar sua dor. Era capaz de, de repente, chorar literalmente o horror de estar no mundo. Tinha uma fragilidade que o levou a se esconder num canto da Disneylândia, chorando copiosamente seu medo dos brinquedos perigosos. Era homem de carrosséis e de carrinhos de bater, seu heroísmo era outro. O de ter uma relação visceral com o mundo ideal, num platonismo sensual e todo dele, todo próprio. Enfrentou a vida sendo ele mesmo, sem reservas; mas seus antagonistas e coadjuvantes nem sempre decoraram o enredo que ele supunha estar em cena.

A maior aventura de seu corpo era o sexo. Afora isso, o abuso do álcool. Numa noite de 1963, Nelita, sua sétima esposa, trinta anos mais jovem que ele, preocupada, lhe pediu que parasse com aquilo. Ele lhe disse que ainda não havia chegado aonde queria. Aonde ele queria chegar? Ao choro. Há vários depoimentos que depõem sobre sua necessidade de chorar. Daí o imperativo de criar sempre, ainda que transitoriamente, a sensação da alegria; ela o distanciava de seu próprio poço. Foi talhado para a felicidade, e, como diria Jean Paul Sartre, "o inferno eram os outros" que não conspiravam simultaneamente para a felicidade do poeta.

Era como se Vinicius fosse a única bailarina a decorar a coreografia. A crueza do mundo o devastava, e ele tratava de torná-la lenda, coisa épica. O poeta teve, como Manuel Bandeira, que, aliás, o definiu como um "monstro de delicadeza", sua mitologia pessoal. Foi um menino que transformava aquilo que era difícil de encarar numa fábula que incorporava a essa mitologia. Por isso, talvez tenha tido dificuldades em lidar com a infância de seus filhos. Eles eram concretos demais. Meninos que careciam de um menino. Na adolescência deles, Vinicius, se não pôde ser um pai clássico, pôde ser um amigo e camarada, e seu amor paterno afinal fluiu. Não que ele não os tivesse amado pequeninos, mas eram deveras pequeninos para que ele, com seus braços de nuvem, pudesse contê-los.

"Meu tempo é quando"
Que dizer de Vinicius de Moraes? Que nasceu no dia tal, numa família amante das artes; de pai latinista e de mãe alegre (teve uma infância com trilha sonora, já que sua mãe não parava de cantar!); que teve mimos e afagos; que foi protegido até o fim por sua irmã mais velha, Lygia; que foi advogado pela Faculdade de Direito do Catete; que depois cursou a Universidade de Oxford como bolsista; que teve nove esposas, quatro filhas, um filho? Que amou o cinema, chegando mesmo a ser crítico dessa arte e um censor que nunca censurou um filme? Que esteve na diplomacia, em Los Angeles, Paris, Montevidéu, Ouro Preto, Lisboa? Que correu o Brasil, a Europa e a América Latina em intermináveis excursões musicais?

Comecemos por sua condição de carioca. Em certa crônica ele dizia:

"Ninguém é carioca em vão. Um carioca é um carioca. Ele não pode ser nem um pernambucano, nem um mineiro, nem um paulista, nem um baiano, nem um amazonense, nem um gaúcho. Enquanto que, inversamente, qualquer uma dessas cidadanias, sem diminuição de capacidade, pode transformar-se também em carioca; pois a verdade é que ser carioca é antes de mais nada um estado de espírito. Eu tenho visto muito homem do Norte, Centro e Sul do País acordar de repente carioca, porque se deixou envolver pelo clima da cidade e quando foi ver... kaput! Aí não há mais nada a fazer. Quando o sujeito dá por si está torcendo pelo Botafogo, está batendo samba em mesa de bar, está se arriscando no lotação a um deslocamento de retina em cima de Nélson Rodrigues, Antônio Maria, Rubem Braga ou Stanislaw Ponte Preta, está trabalhando em TV, está sintonizando para Elizete.

Pois ser carioca, mais que ter nascido no Rio, é ter aderido à cidade e só se sentir completamente em casa, em meio à sua adorável desorganização. Ser carioca é não gostar de levantar cedo, mesmo tendo obrigatoriamente de fazê-lo; é amar a noite acima de todas as coisas, porque só a noite induz ao bate-papo ágil e descontínuo; é trabalhar com um ar de ócio, com um olho no ofício e outro no telefone, de onde sempre pode surgir um programa; é ter como único programa o não tê-lo; é estar mais feliz de caixa baixa do que alta; é dar mais importância ao amor que ao dinheiro. Ser carioca é ser Di Cavalcanti”.

Embora tenha declarado que "São Paulo é o túmulo do samba"; e de costumar chatear os amigos paulistanos dizendo: "Eu gosto muito de São Paulo. O único problema dessa cidade é que você anda, anda, anda e nunca chega a Ipanema"; ele ia para lá com freqüência. Chegava a tomar um táxi em Ipanema e pedia muito compenetrado ao motorista: "Me leve para São Paulo, por favor. Se quiser pode passar em casa para avisar a patroa e pegar uma escova de dentes". Um de seus melhores amigos era o paulistano Zeca Marques da Costa, único homem com quem Vinicius partilhava uma banheira. A respeito dessa amizade, costumava dizer a uma de suas esposas: "Não se meta, somos um casal idoso que completou as bodas de prata". Era louco por banheiras. Nelas repousava, bebia, escrevia com a máquina sobre uma tábua; inúmeras vezes dormiu e inundou a casa.

Outro aspecto importante da vida do poeta foi a religiosidade. Aos onze anos entrou no Colégio Santo Inácio no Rio de Janeiro, dirigido por jesuítas afetuosos, mas severos. A educação religiosa ministrada a Vinicius promoveu uma angústia existencial, que desencadeou uma série de poemas metafísicos em que o conflito entre carne e espírito esteve sempre presente. Essa fase durou até 1932, aproximadamente. Tendo entrado na faculdade dois anos antes, ele se integrou ao Centro Acadêmico Jurídico Universitário, o CAJU, freqüentado pelos alunos mais aplicados, Com esse grupo teve longuíssimas tardes e noites de discussões filosóficas que o levaram a leituras de Nietzche e Kierkegaard, entre outros. Nesse período, contou com um "mestre" devotado e brilhante, o futuro romancista Octávio de Faria. O interesse pelo discípulo transcendeu a fraternidade e Octávio sofreu uma longa e platônica paixão pelo jovem Vinicius. Esse fato contribuiu grandemente para o rompimento da amizade. Também é dessa época, sob a influência do grupo, a empatia do poeta pela direita e pelo fascismo. Felizmente tal fascínio diluiu-se como um mal adolescente, quando lugar a uma tomada de consciência que o levou a ser um homem de esquerda. Fato determinante dessa guinada ideológica deu-se em 1942, quando acompanhou o escritor marxista norte-americano Waldo Frank numa viagem pelo Norte e pelo Nordeste do Brasil. Nessa ocasião o poeta se deu conta da miséria e dos abismos sociais existentes no país.

A nova perspectiva o levou a escrever poemas como "Operário em Construção", "Rosa de Hiroshima", entre outros; e a inaugurar uma fase menos idealista, e mais comprometida com o cotidiano e com o social, sem abandonar, é claro, a temática amorosa, mas lhe conferindo mais sensualidade.

O Músico
A questão musical é algo que daria outra matéria, ou mais apropriadamente, um livro. Temos o grito explicitado do que foi o poeta em "Violinos e Batuques" desta revista. Ao somar seus parceiros, podemos tapar as bocas estéreis dos que se referem a ele como um intelectual que se entregou à "música fácil" (chamada por um crítico nefasto de easy music). As parcerias começaram aos catorze anos, com os irmãos Tapajós, com duas músicas sofríveis: "Canção da Noite" e "Loura ou Morena".

O ano de 1956 abre seu caminho para o showbusiness: conhece Tom Jobim, o gênio de 29 anos, quebrado economicamente, e que seria seu parceiro em várias obras-primas. Aquele que, depois de Heitor Villa-Lobos, talvez tenha sido o maior músico brasileiro de todos os tempos e com quem compôs não a melhor canção, mas a de maior sucesso: "A Garota de Ipanema". Outros parceiros o sucederam, tais como Baden Powell, Carlos Lyra, Francis Hime e o intuitivo máximo, fã de Bach: Pixinguinha, aquele que Vinicius consideraria "o melhor homem" que já conhecera. Temos ainda o jovem Chico Buarque de Hollanda, que dispensa apresentações. Claro está que os demais também dispensariam apresentações, mas num triste país sem memória como o nosso...

Seu último e mais devotado parceiro foi o músico Toquinho, que, apesar de ser 34 anos mais jovem que o poeta, fez, muitas vezes, o papel de seu pai. Foi descansando dentro de uma banheira, depois de ter passado a noite trabalhando junto com seu companheiro na trilha sonora de A Arca de Noé para a Rede Globo, que Vinicius sentiu-se mal pela última vez. Seu corpo estava comprometido pelo álcool e seus pulmões em péssimo estado. Além disso, havia anos lutava contra o diabetes. Foi encontrado pela empregada com a respiração acelerada. Toquinho foi socorrê-lo. Eles tinham onze anos de estrada juntos.

Conquistaram a Europa, em especial Itália e Portugal, a América Latina, onde têm uma legião de fãs ardorosos; fizeram intermináveis excursões pelos circuitos universitários; gravaram discos antológicos, e mais: se queriam muitíssimo bem. Esvaziaram a banheira, cobriram-no com toalhas secas, mas o poeta não resistiu: seu pulso parou sob os dedos desesperados de Toquinho.

Enfim, Vinicius de Moraes é um assunto infinito a quem devemos dar um fim provisório. É assim: só por enquanto podemos parar de falar dele. Como o amor, ele seria infinito enquanto durasse, e tem durado. Foi chama, mas dificilmente se acabará. Sua obra foi irregular, dado o confessionalismo do qual derivou. Mas, considerando seu romantismo latino perdurável e renovado, sua sinceridade e seu sofrer, o que ele acreditou ser sua vida, o poeta tem uma pedra indestrutível na qual se assentou na estrada antiga e perpétua da História: sua sinceridade aliada a uma competência lírica desconcertante.

Shalon, amém, saravá, axé, enfim, aquilo com que qualquer deus possa abençoar um homem bom (ainda que homem), e fazer dele uma entidade que, de tempos em tempos, visita a nós, mortais.

Revista Discutindo Literatura

A TRINCHEIRA

No ermo de lá, a vida não era pensada, só vivida. Pingava cotidiana, mansamente, com um dia depois do outro, até que um deles era sucedido pela morte. Os trabalhos, duros. Os homens, em geral, na lida com a terra e o gado, de manhã à noite; as mulheres no enfrentamento com fogões excessivamente quentes, no lavar, no varrer, no cozinhar, no parir e criar na precariedade de lonjuras meninos que tinham infâncias de cabresto curto abortadas pelo imperativo de ajudar em casa. E tudo era natural, tudo era porque é assim que deve ser.

O trabalho estava tão incrustado na necessidade da sobrevivência, que os excessos que ele impunha não eram notados, senão pelas rugas antecipadas, a saúde sacudida de dores, a vida mais breve. Mas se era assim para todos, era um fato a ser aceito com a conformidade melancólica da pobreza. Não havia tempo para pensar a vida porque, para se estar inserido nela, era preciso agir como um equilibrista, só que em tempo integral.

As aflições ligeiras, as angústias na superfície de pedra da realidade. Os sonhos escassos, semelhantes, ocupavam as cabeças, como um ópio/óbolo da natureza, gerando desejos vagos de rebeliões que se sabia de antemão que não iriam eclodir. Passavam. Os afetos existiam manifestos; muitas vezes (muitas) perfilados, aguardando uma brecha de manifestação no cotidiano.

De modo que era lícito a um trabalhador que "não deixava faltar nada em casa" uns goles ardidos de cachaça. A cachaça que anestesia o cotidiano bruto, o tédio pegajoso como uma doença, a paz indesejada por excessiva. Alguns se entregavam a ela para serem digeridos lentamente como por uma jibóia que tem fome, mas não tem pressa, uma vez que a presa já está travada e segura entre as mandíbulas. Outros se deixavam por conta dela somente no fim de semana. Natural, coisa de homem. As mulheres, em geral, viviam a seco, sem nenhuma anestesia. Lúcidas e impotentes, algumas arriscavam uma alegria.

A conversa incidental costurava os dias com fios de amenidades, outras vezes com casos tenebrosos acontecidos com gente de fora. Sim, alguma coisa de bom havia ali, no ermo, lá não tinha esse tipo de pessoa. E se olhavam desconfiados do que pode morar no outro.

Havia, claro, a cidade. Deslocamento geográfico pequeno; psicológico, grande. Não que o povo dos dois espaços fossem muito diferentes (o que se chamava cidade integrava o ermo), mas porque na cidade havia mais possibilidades do estremeção de uma novidade que fizesse vibrar o cotidiano.
O menino vivia na fronteira dos dois mundos. Era espigado e magricela, branco e rosado, especialmente o narizinho vermelho dos invernos gelados do sul de Minas. Tinha aquela liberdade que têm os meninos de seis anos cuja mãe tem mais cinco crianças e um marido para tomar conta; além, é claro, da casa.

Ela era moça, menos de trinta. Lá o despertar do corpo é uma aleluia que freqüentemente redunda numa maternidade precoce. A menina ama seu brinquedo novo; animal programado, logo se dá conta da crueza de sua pequena criatura e de suas necessidades. Esquece a infância recente, a adolescência apenas iniciada, e vai ser o que viu sua mãe ser. No corpo, uma flacidez de velha senhora parideira; nos olhos e no riso, escapam lampejos de juventude. O menino cotidianamente a rodeava enquanto ela, distraída dele, mecânica, mágica, fazia a casa inteira funcionar. Gostava dos cabelos dela, bem pretos, do modo como suas mãos operosas se moviam destras, ligeiras, e amava perdidamente seu riso raro. Quando ele aflorava, o menino se punha numa agitação eufórica porque naquele instante ele tinha certeza de que ela estava sob o domínio da alegria.

Nos finais de semana pela manhã, o pai sentava à mesa de madeira mal talhada. Punha o cotovelo sobre ela e segurava a cabeça com uma das mãos. O menino aflito do desconforto que intuía nele. Tinha vontade de expressar sua cumplicidade, seu pesar. A entidade, que às vezes lhe concedia duas palavras, ou um carinho ríspido de desarranjar-lhe o cabelo, tomava uma caneca de café ralo, um pedaço mínimo da broa seca. Sua magreza de braços fortes, moldados à enxada, era coroada por um rosto cavo, de olhos fundos; e sua pele tinha um brilho baço, uma transparência de pequenas veias azuis e avermelhadas. A mãe na conformidade do fogão e da urgência das obrigações; ela não tinha finais de semana.

O menino sabia que era sábado, e que nesse dia e no seguinte o bar imantado conduzia o pai para seu interior. Era a hora de tomar conta dele. Confusamente entendia que era sua missão. Ficava, miudinho, nas cercanias do bar, invisível como parte da paisagem, e via que, dois copos depois, o pai ficava valente, e seus companheiros de copo também. Contavam histórias extraordinárias sobre pescarias, acidentes, heroísmos nunca praticados; mas disso o menino não sabia.

Não demorava muito para que a comunicação ficasse confusa, nesse momento o coração apertava. O pai trôpego, saindo do bar. A angústia de saber que não podia com ele. Seis anos, menino magro, o pai, de chumbo. Seguia-o. O coração , aos pulos. O homem ia pelo meio da rua, como um bailarino cuja música ainda não tinha sido inventada. Havia o pequeno tráfego, que para o menino era enorme. Cercava-o, não permitia que, por desgraça, algum animal ou veículo pudesse atingi-lo. Seu dever era mantê-lo visível.

Então assistia à sua queda. Era um menino que todos os dias temia que seu pai se quebrasse. Conferia-o: respirava, resmungava coisas, praguejava frouxo, num engrolar que ia morrendo até o apagão. Presto, o menino corria a pegar pedras. Segurava-as com ambas as mãos, seguia resoluto e com dificuldade ia cercando o pai adormecido de pedras grandes para que todos pudessem ver que ele jazia ali e não se podia tocá-lo. Arrancava apressado touceiras de mato, espalhando-as antes e depois do corpo inerte, para alertar a todos que era preciso fazer um desvio: algo acontecia adiante.

Postava-se, então, em lugar estratégico para vigiá-lo. Inconsciente do seu pequeno vigilante, o pai, inconsciente de si, dormia seu sono de anestesia, até um despertar confuso, um seguir para casa, para a cama tosca, onde emborcava exausto de ser sem saber sequer que o era nem graças a quem.
Revista Discutindo Literatura

SÓCRATES - O PREÇO DE UMA ALMA PERFEITA


Os trabalhos de Sócrates são o grande divisor de águas da Filosofia grega. Ele nasceu em 469 a.c. e não deixou obra escrita. Entretanto criou métodos e teorias tão revolucionários que sua ótica foi imortalizada por seus discípulos (sobre tudo Platão). Sócrates se opunha aos argumentos de várias correntes anteriores, recusando-se a crer que o universo fosse um fenômeno puramente mecânico e sem finalidade, e que nada pudesse ser considerado absoluto.

Apegou-se à idéia de que o mundo era um trabalho de inteligência que se movia em direção a um fim benigno, a que chamou de divino. Subordinava tudo à felicidade humana, considerando-a não como a conquista de um objeto do desejo, mas tentando verificar se essa conquista levaria efetivamente o homem à felicidade. Para ele, a felicidade humana seria encontrada no que chamou de perfeição de alma: em tornar a alma de alguém tão boa quanto possível.

Tomou para si uma máxima inscrita no Oráculo de Apolo, na cidade de Delfos, que dizia: Conhece-te a ti mesmo. Para Sócrates, o aprimoramento da alma derivaria, antes de qualquer coisa, do autoconhecimento. Seu método investigativo era a maiêutica, que consistia no exaustivo questionamento de uma idéia ou de um ponto de vista, até que ele não pudesse mais ser posto em dúvida. Então, considerava ter chegado a uma verdade essencial e incondicionalmente válida. O filósofo arrebanhou e arrebatou multidões de jovens que não o encaravam apenas como um mestre, mas como um companheiro de viagem na busca de respostas a vários questionamentos.

Sócrates jamais assumiu a condição de mestre. Seus discípulos e as idéias que deles emanavam eram para ele tão importantes quanto suas próprias, e considerava a si mesmo um indagador para quem todas as questões ainda estavam em aberto. Incitava os jovens a questionar todas as normas de conduta recebidas, animando-os a julgar por si qualquer questão moral. Infelizmente, seus métodos foram considerados corruptores: ao tentar fazer a juventude tomar contato mais pleno com suas potencialidades, ele abalava a moralidade repressiva e alguns dos questionáveis sustentáculos daquela sociedade. Por isso e por sua idéia da existência de um princípio benigno uno (que julgavam uma negação das divindades reconhecidas por aquele mundo politeísta), foi condenado ao suicídio pela ingestão de cicuta, um veneno letal.

Seus discípulos, indignados e entristecidos com a sentença, tentaram planejar uma fuga, e houve quem lhe sugerisse a desistência da busca da sabedoria, o que ele considerava sua missão. Mas Sócrates manteve-se fiel a seus princípios. A sentença foi executada em 399 a.c. Na Apologia, Platão reproduz o que teria sido a resposta de seu mestre à sugestão de desistência.

"- Se vocês se oferecessem para me absolver nestes termos, minha resposta seria: 'Atenienses, eu os tenho com muito afeto e estima; mas obedecerei aos céus e não a vocês, nunca deixarei de procurar a sabedoria ou de aconselhá-los com minhas palavras habituais e mostrar a verdade a qualquer um de vocês que eu porventura encontre: Meu bom amigo, você é um cidadão de Atenas, uma grande cidade, famosa pela sabedoria e força; você não tem vergonha de se preocupar tanto em acumular riqueza, honra e reputação, enquanto em nada se importa com a sabedoria e a verdade e a perfeição de sua alma?

E se ele protestar, dizendo que realmente se importa com essas coisas, não o deixarei logo em seguida e seguirei meu caminho; eu o questionarei, interrogá-lo-ei minuciosa e rigorosamente, testá-lo-ei e, se ele não possuir a virtude que aparenta, eu o censurarei por não dar valor às coisas mais preciosas e se afeiçoar às coisas sem valor. Isso farei com todos que encontrar, jovem ou velho, citadino ou estranho, mas especialmente com meus caros cidadãos, visto que vocês são meu próprio povo. Porque estou convencido de que tal coisa é uma ordem do céu; e acredito que porção de sorte melhor do que meu alistamento no serviço dos céus jamais aconteceu com vocês. Porque não tenho nenhuma outra atividade a não ser ir de um lado para outro persuadindo todos vocês, tanto jovens como velhos, a se importarem menos com seus corpos e suas riquezas do que com a perfeição de suas almas, e tornar isso a sua primeira preocupação, e dizendo-lhes que a bondade não vem da riqueza, mas é a bondade que faz da riqueza ou de qualquer outra coisa, na vida privada ou pública, algo de valor para o homem. Se ao dizer isso estou desencaminhando jovens, tanto pior; mas se for declarado que tenho qualquer outra coisa a dizer, então isso não é verdade. Portanto, Atenienses; devo concluir, 'vocês podem ou não prestar atenção em Anytus; vocês podem ou não me absolver; mas não mudarei meus caminhos, mesmo que tivesse que morrer mil mortes”.
Revista Discutindo Literatura

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A arte de gerar


As Imagens e as Vozes da Despossessão: A Luta pela Terra e a Cultura Emergente
Ademar Bogo
A poesia é o suspiro apaixonado que sai naturalmente como o hálito perfumado da boca daqueles que teimam levar o corpo através de passos firmes, para construir o futuro por onde passarão as futuras gerações.

Deixaremos como herança aos que ainda vão nascer, para que sintam através do coração, o perfume de cada passo dado como cicatrizes abertas no tempo de cada existência.

Somente produz poesia quem sabe sentir e herdar as poesias já produzidas pela vida da natureza e da humanidade. É o coração quem alerta o caminhante dizendo que:

Há uma flor desabrochando
há uma árvore dormindo
há uma montanha gritando.
há nuvens e arco-íris
há ternura e paixão
há fome, gente morrendo
há dor dentro da canção.
há lábio aberto sorrindo
há povos em procissão
há guerras no tempo indo
há luar cá no sertão.(1)
há seresteiros cantando
há casais de bicho amando
há sonhos no coração...

A poesia é como o mar, que transforma sua prepotência em humildade, prostrando-se aos pés das montanhas, a esperar que a água doce da serra venha lhe matar a sede. O mar não destrói a montanha, porque sabe que não teria mais onde encostar a cabeça na hora que quisesse descançar do balanço das ondas. Assim como a poesia preserva a Vida para que esta se deixe alimentar por ela.

A beleza, cansada foi embora, descansar nos acampamentos dos Sem Terra, à espera de que a terra devolva-lhes o espaço para deixar nascer sementes de beleza e sensibilidade, para germinar um, futuro de paz e solidariedade.

Neruda,(2) Drummond,(3) João Cabral,(4) Marighella,(5) Casaldáliga...(6) renascem na sombra das lonas pretas e se transformam em sonhos naqueles que aprenderam a amar a vida, olhando para um ponto imaginário do horizonte utópico, onde descansa a hora da chegada.

Nós estamos aqui. Nós queremos sonhar e mostrar as belezas que há nos labirintos de nossa existência.

Um dia entenderemos as flores, quando elas nos dirão que, só pode produzir perfume quem não teve medo de se deixar florescer.

1 "Região pouco povoada do interior [do Brasil], em especial, a zona mais seca que é a caatinga, ligada ao ciclo do gado e onde permanecem tradições e costumes antigos (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001).

2 Neruda (Pablo Neruda): poeta e embaixador chileno, nascido em 1904, recebedor do Prêmio Nobel de Literatura em 1971, vindo a falecer em 1973, poucos dias após o assassinato do Presidente Salvador Allende. Sua poesia inicial, marcada por uma temática amorosa e uma grande sensualidade, a exemplo de Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada (1924), transforma-se após sua vivência da Guerra Civil Espanhola, o que ele relata na coleção Espanha no Coração (1938). A partir desse divisor de águas, ele abraça o marxismo, como se evidencia em Canto em Estalingrado (1942).

3 Drummond: (Carlos Drummond de Andrade), poeta nascido em Minas Gerais em 1902. De sua longa, diversa e profícua carreira literária, cita-se Brejo das Almas (1934) e Sentimento do Mundo (1940) onde se evidencia um desejo de solidariedade com os homens.

4 João Cabral de Melo Neto: Poeta e diplomata, nascido em Recife, Pernambuco, em 1920. Seu poema narrativo Morte e vida severina, tendo como subtítulo "Auto de Natal pernambucano", escrito entre 1954 e 1955, constitui um dos marcos na literatura brasileira no tratamento do problema da terra.

5 Marighella (Carlos Marighella, 1911-1969) foi um revolucionário brasileiro, destacado líder da luta armada contra a ditadura militar. Seus quarenta anos de militância tiveram início no Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o qual rompe em 1968. Foi o fundador e dirigente nacional da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização disposta a iniciar a luta armada, cujo nome ecoa o espírito revolucionário da Aliança Nacional Libertadora (ANL), comandada por Luís Carlos Prestes. Aos 57 anos, foi assassinado pela ditadura (1969).

6 Casaldáliga (D. Pedro Maria Casaldáliga): Bispo, de origem espanhola, da prelazia de São Félix do Araguaia, no Mato Grosso. Testemunhou de perto o número crescente de posseiros pobres num contexto de conflitos e assasinatos pela terra. Sua Antologia retirante (bilíngüe), foi publicada em plena ditadura (1978) pela Editora Civilização Brasileira. Suas poesias expressam seu compromisso com os oprimidos

Poemas: Editado por Else R P Vieira. Tradução © Bernard McGuirk.
/www.landless-voices.orgc

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Terra Brasilis - Poemas

Nova do Achamento
(Quarta-feira, 22 de Abril)
Sabei porém que foi um sobressalto
E tremo ainda ao pô-lo no papel.
Vimos primeiro um monte muito alto
E outras serras mais baixas ao sul dele.

Vimos depois as serras terra chã
Muito formosa e cheia de arvoredos.
Era a luz a surgir de seus segredos
E em nós embora tarde era manhã.

Nem sei dizer Senhor o espanto e os medos.

Achar Senhor é pão que mata a fome
Da ânsia de mais mundo e de mais luz.
E ao monte grande o Capitão pôs nome
De Pascoal. E à terra de Vera Cruz.

Manuel Alegre
Nova do Achamento
Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.



Descobrimento

Um oceano de músculos verdes
Um ídolo de muitos braços como um polvo
Caos incorruptível que irrompe
E tumulto ordenado
Bailarino contorcido
Em redor dos navios esticados

Atravessamos fileiras de cavalos
Que sacudiam as crinas nos alísios

O mar tornou-se de repente muito novo e muito antigo
Para mostrar as praias
E um povo
De homens recém-criados ainda cor de barro
Ainda nus ainda deslumbrados

Sophia de Mello Breyner Andresen
«Brasil ou do outro lado do mar»,
Obra Poética III, Lisboa, Ed. Caminho



Carta de Pêro Vaz de Caminha
É equívoca a ternura. Demasiados gestos
Para uma só palavra.
E agora que será de nós? Ficar aqui?

Esta terra contém água em demasia.
Prefiro a inteireza da pedra. Mas que podemos nós fazer
Quando as palavras sobram
E o amor acontece?

Luís Filipe Castro Mendes
Inédito



Rio Caí

Encontrada a terra
Na coincidência da Páscoa
Caminha olhou da grande nau
A praia
E escreveu ao Rei

Nu
O dono da terra
Olhou o branco marítimo
Trazido pelo vento

A praia clareava a floresta
Junto do mar
Enfeitada de penas e flechas

De espadas

No vermelho branco do encontro
A surpresa não teve fingimento
Na vertigem do silêncio da palavra

O Rei
Leu a carta de Caminha
E ordenou a invenção da história
Como se nada fosse o que era

Rui Rasquilho
25 Poemas brasileiros e um Saga Lusitana
Thesauris, Brasília, 1997

Revista Camões - Portugal

LEITURAS CONTEMPORÂNEAS DE EÇA

Uma Passagem de Ano
Eça de Queirós em Lisboa - c. 1882Eça de QueirozFotog., Photographia ContemporaneaIn O Contemporâneo, nº 108, Lisboa [1882], p. [1]BN PP. 16913 V.
Luís Filipe Castro Mendes

Tudo o que escrevemos nasce de uma falta: nós não somos completos. Há uma culpa de que ninguém nos pode perdoar, uma dor de que nada nos pode consolar, um dia que acaba sem nunca se alcançar. No último dia do ano de 1899 José Maria Eça de Queirós chegou ao princípio da noite a casa do seu amigo Eduardo Prado ruminando estes pensamentos melancólicos. A chuva torrencial que alagava Paris e a trovoada, que sempre o aterrorizava, faziam-lhe perceber estranhos presságios e sentir pavores.

A rua de Rivoli estava apinhada, toda a gente se apressava a caminho das suas festas. À porta da casa de Eduardo Prado Eça encontrou Joaquim Nabuco.

"Homem, acalme-se, só enterramos o século", disse Nabuco, vendo o português tão perturbado. O cônsul assumiu a sua máscara de elegância e riu.

Encontrava nos seus amigos brasileiros uma força toda feita de brandura, uma energia mais leve do que o ar, que lhe fazia bem e lhe acalmava os terrores. Deixara em casa Emília e as crianças, mas prometera aos pequenos voltar antes da meia noite. Antes de enterrarem o século.

"O que é que enterramos, Nabuco? Não me apetece o novo século. Não quero mais novidades, mais engenhocas. Não quero mais invenções nem descobertas". O outro respondeu, para sustentar a conversa: "Vai ser diferente para nós, caipiras. O Prado encontrou no sertão da Bahia, num cafundó de Judas fora do tempo e do espaço, um caboclo que sabia de cor as trovas do Bandarra". Mas Eça estava já com o espírito vivo: "Pois é, Nabuco, mas você e o Prado não têm nada que ver com esses caboclos. Vocês são os frutos da decadência, intelectuais embebidos de civilização europeia a quererem governar um povo que não vos compreende."

"Está falando de você mesmo, caro cônsul, e da sua simpática roda de amigos portugueses", atalhou com impaciência Joaquim Nabuco, porque se abria finalmente a porta do apartamento e Eduardo Prado interpunha entre o patamar da escada e o espaço ruidoso e festivo que abria aos amigos o frenesi empolgante da sua cordialidade.

"Já discutindo? Queirós, você está pálido como o personagem romântico que nunca deixou de ser. Nabuco, temos uma boa casa hoje. Temos um moço espertíssimo, o Graça Aranha, o nosso Hilário de Gouveia, tudo gente conhecida, amiga. Tenham uma boa passagem do século e voltem daqui a cem anos!"

Servia-se champanhe gelado e o tinir dos cristais juntou-se no espírito de José Maria às luzes oscilantes do gás, numa sinestesia que o reconciliou por momentos com a vida. Tinha defendido a sua existência como um bicho-de-conta faz o seu casulo. Mas era à arte que tinha de prestar contas, era ela que o esperava no final de todos os caminhos e por trás de todos os sossegos.

Sempre se perguntava "que fiz eu?" e ninguém lhe sabia dar resposta. Certamente, todos os críticos lhe ficavam aquém, Fialho era um poço de inveja, Machado de Assis não o entendera. Sempre perguntava, aos íntimos amigos e aos meros companheiros, a Oliveira Martins como a Teófilo Braga: "que fiz eu?" Mas no mais dentro de si sabia o que fizera.

Prado e Nabuco apresentavam-no aos outros brasileiros. Nunca quisera relacionar-se com escritores franceses, apesar das tentativas de Xavier de Carvalho. Quem o conhecia fora do espaço da sua língua? E quem o poderia entender? Zola gabara-lhe o perfeito francês e lamentara o seu próprio desconhecimento de línguas estrangeiras, com a delicadeza displicente das culturas dominantes. Pedira-lhe sem convicção traduções das suas obras para uma eventual edição em França e logo deixara cair esses projectos. Eça de Queirós, para além do círculo de amigos da sua juventude, só abrira verdadeiramente a sua intimidade àquele pequeno grupo de brasileiros, Eduardo Prado, Domício da Gama, Joaquim Nabuco, com quem alargava o debate que abalara a sua juventude e transformara a sua geração: como ser verdadeiramente moderno quando se é irremediavelmente periférico?

"É o fim do século da Europa, pontificava Graça Aranha, um século americano vai nascer". Eça pensou que talvez fosse melhor para ele não permanecer muito tempo nesse novo século, que lhe parecia trazer a realização dos piores pesadelos humanos. Sentia-se doente, julgava-se no fim. Os médicos receitavam-lhe curas em variadas estâncias termais, curas que o faziam constantemente correr para longe da sua casa, dos seus livros, da sua família, para ser visto de relance por outros médicos, todos com os mesmos diagnósticos vagos e as mesmas terapêuticas inseguras, todos impotentes perante o mal que o dominava.

"Você, Queirós, que conhece os americanos e namorou as americanas, diga lá ao Aranha se eu não tenho razão em ter medo deles?" era Prado que lhe dirigia a palavra, procurando arrancá-lo da sua melancolia. Eduardo Prado discutia com Graça Aranha, que defendia os Estados Unidos, e tentava distrair com essa polémica o seu amigo José Maria, cada vez mais doente e escurecido por dentro.

Eça respondeu: "Das americanas não tenha nunca medo, Graça Aranha, e não acredite em tudo o que diz o Prado. É verdade que em tempos eu me afastei precipitadamente de duas americanas que namorava ao mesmo tempo, mas viam-me vocês a morar em Pittsburgh? Meus queridos, em noites como esta o sofrimento com as nossas miseráveis entranhas vem antepor-se às mais sagradas inquietações quanto ao futuro da Humanidade. Só há uma certeza: a de que daqui a cem anos estaremos todos mortos. Talvez a nossa língua esteja então morta como o latim e só restem eruditos para ler os nossos livros. Talvez todos nós tenhamos sido esquecidos. Talvez não haja mais Portugal nem Brasil, talvez uma catástrofe tenha vindo dizimar os nossos trinetos. Mas hoje estamos aqui e bebemos os vinhos do Eduardo Prado e este me parece ser o nosso primeiro dever para com a Humanidade no século que desponta. Tenho dito."

Aplaudiram-no, risonhos. Prado e Nabuco suspiraram de alívio. "Voltou-lhe a verve", murmurou Nabuco. "Volta sempre", assegurou Prado.

Às nove horas, pontualmente, sentaram-se para jantar. Eça de Queirós parecia divertido. Contara horrores de Nova Iorque, descrevera com exagero, sugerira com subtileza. Sentia-se feliz com o brilho da sua conversa, como se a tivesse escrito. Joaquim Nabuco observava-o.

"Querido amigo", começou a dizer Nabuco, "invejo-o pelas mesmas razões que o admiro. O que me perdeu foi não ter tido a coragem de ficar sozinho. Escrevi sempre em função de objectivos, nunca soube perder-me naquilo que escrevia."

"Que é isso, Nabuco?" estranhou Eça. "A arte por si só não pode nada. Não foram os romances que trouxeram a abolição da escravatura, foi gente como você."

"Mas de nós todos quem ficará?" perguntou o outro. Pareceu a Eça que Nabuco estava tentando posar para a posteridade, à maneira dos Vencidos da Vida nos seus extraordinários retratos. O que fica não somos nós, pensou, é a arte. Mas a arte não nos conhece, serve-se de nós como nós nos servíamos das prostitutas espanholas ou como o Prado e o Nabuco se serviam das escravas da casa dos pais. E o pobre Nabuco a lamentar-se por não ser escritor…

Serviu-se de vinho e veio então paralisá-lo a náusea, depois a dor, tão conhecida, a agarrar-lhe as entranhas uma por uma, logo as tonturas. Torceu-se na cadeira, os outros viram-lhe a palidez e os tremores. Hilário de Gouveia levantou-se para lhe acudir.

"Não é nada, não é nada", cortou Eça. Conhecia a dor, sabia quando passaria, apenas não conseguia disfarçá-la. Prado e Nabuco, que conheciam já aquelas crises, nada comentaram. Mas Hilário de Gouveia interessou-se clinicamente, perguntou por sintomas.

"A revolta das entranhas contra a alma" começou Eça. Mas Prado atalhou: "Ou as consequências de cinquenta anos de comezainas. Queirós, você é o único romancista que eu conheço que descreve ao pormenor os menus dos pantagruélicos jantares dos seus personagens. Merece a dor de barriga."

Eça protestou, citou Balzac, remontou ao Satyricon. Estava contente por Prado ter prontamente afastado a conversa da curiosidade médica de Hilário de Gouveia. Embora descrevesse os seus sintomas meticulosamente nas cartas que escrevia, não gostava de falar de doenças. Pensava demasiadamente na morte para poder falar dela.

"O que eu tenho comido em sua casa, Prado, tem-me servido a imaginação para muitas peças literárias. Não são comezainas de farta-brutos, homem, são manifestações superiores de civilização."

A chuva tornara-se mais pesada e insistente, lá fora. Só homens rodeavam a grande mesa oval, onde se começava agora a servir a sobremesa. Eça pensou no que dissera Nabuco. Ficar sozinho com a arte…Lembrou-se de noites de frio e de febre, em Newcastle, em Bristol, em Leiria – sozinho, sempre sozinho com as folhas de papel que enchia de palavras, cheio de amargura e de dívidas por pagar. E tinham sido esses os momentos triunfais da sua vida?

Joaquim Nabuco, como quem reflecte: "Não me arrependo da acção, ela era necessária. Era a primeira das necessidades. Destruímos o esclavagismo que nos moldou e, no momento mesmo de ele ruir, descobrimos com escandalizado espanto que o amávamos. Mas para além da acção há tudo o que deixámos escondido dentro de nós…"

Eça olhou-o com ternura. Só os que não escrevem fazem uma religião do acto de escrever. Pensou em Machado, com quem nunca procurara estabelecer uma relação pessoal, que o hostilizara com uma crítica injusta a que ele jamais respondera. Machado de Assis, eriçado de cepticismo, nunca partilharia do fascínio religioso pela escrita que este fim de século trazia consigo.

"Que pensará disto tudo Machado de Assis?" perguntou.

"Nunca se sabe o que pensa Machado de Assis" responderam-lhe.

Eça repassava na mente o menu daquele jantar, como se pensasse aproveitá-lo para um romance. Joaquim Nabuco comprazia-se na melancolia do que poderia ter escrito. E Eduardo Prado, solene, mandou servir o café como se estivesse a mandar entrar em cena o novo século.
Revista Camões - Portugal

Saramago em Jalisco

Carlos Fuentes

Quando, no Verão passado, levados pelo nosso amigo Juan Cruz, fomos, Silvia e eu, visitar-vos, a Pilar e a ti, na ilha de Lanzarote, primeiro pensei: esta ilha não existe, é uma miragem, aproximo-me de uma nave de pedra fantasmagórica ancorada frente à costa de África... Como é que pode existir uma ilha que não acaba de nascer, que ainda não teve tempo de fazer história?

Olhamos as montanhas de fogo gelado que dominam a paisagem e recordamos que só há dois séculos existem. Olha: encontramo-nos numa ilha trémula onde o fogo está enterrado mas continua vivo, onde basta plantar uma árvore a menos de um metro para que as suas raízes ardam e verter um cântaro de água numa cova para que o líquido ferva.

Ali vivem Pilar e tu, Saramago, e ao chegar a Lanzarote eu perguntei-me: Como pode este escritor escrever rodeado de cordilheiras debaixo do mar e areias de um azul mais intenso que o do oceano e do céu juntos? Que poderes possui Saramago para vencer com a sua pena, dia a dia, a natureza terrível, gelada e fervente ao mesmo tempo, desta ilha que devia permanecer, talvez para sempre, submersa, parte da cratera do mar?

Perdoa-me, Saramago, mas desde então leio e releio os teus livros imaginando-me em Lanzarote e imaginando-te a ti escrevendo-os todos nessa ilha que te permite viajar pela vida sobre uma jangada de pedra com velas de papel.

Lanzarote é a paisagem do primeiro dia da criação.

E no primeiro dia da criação, Deus disse que no princípio era o Verbo e retirou-se para a sua herdade de nuvens, tendo aberto e fechado, instantaneamente, com o seu único verbo, o livro da criação.

Então chegou Saramago e disse: Está certo. No princípio foi o verbo, mas o verbo não é eterno, é simplesmente interminável.

Talvez Deus, ao dizer a sua primeira palavra, pensasse que dizia a última palavra.

E os poderes do mundo estiveram de acordo com Deus. Não há nada a acrescentar. Tudo está dito, tudo está legislado. As imperfeições do mundo são menores e podemos consertá-las, como se conserta um automóvel ou uma cafeteira.

Por outro lado, chegou Saramago, o romancista, e disse-nos: Nada está dito. Tudo está por dizer. Cada vez que alguém diz «Tudo está Dito», isso significa que «Não se disse Nada». Ou que já não se deve dizer mais. Ao calar, disse-se.

José Saramago quer unir-se assim aos homens e às mulheres que querem dizer as suas palavras. Esta é a razão do seu trabalho e a honra dos seus romances: Dizer a palavra anterior, a herdada. Mas também a palavra por vir, a desejada. Esta é a colheita do romancista Saramago: tudo o que foi dito e o que falta dizer.

Estou a definir a arte de Reis, o Memorial do Convento, a História do cerco de Lisboa, O Evangelho segundo Jesus Cristo, o Ensaio sobre a cegueira e, finalmente, Todos os Nomes, os nomes da humanidade que não disse a sua última palavra.

Ricardo Reis, Saramago: Somos mais que um só Fernando Pessoa, somos uma pluralidade de seres faladores, todos podemos ser poetas.

História do cerco de Lisboa, Saramago: Basta mudar um dado para que mude a história. Como o jogador de xadrez, o romancista Saramago, ao mover uma peça do tabuleiro, sacrifica o milhão e meio de possibilidades e consequências que um movimento diferente tivesse desencadeado. Assim presta contas Saramago à verdade: multiplicando as possibilidades da liberdade.

O Evangelho segundo Jesus Cristo, Saramago: Porque é que o carpinteiro José não avisou todas as mães de Israel daquilo que José sabe: que Herodes vai assassinar todos os recém-nascidos do reino? Para salvar Jesus, para que Jesus cumpra o seu destino, que será, também, a sorte da morte? Será que José reserva Jesus para a morte na Gólgota? Para isso salva-o Herodes? E os outros, todos os outros meninos, esses o quê? Pode elevar-se a glória de Deus ou de um governo sobre a miséria de um só menino morto?

Todos os Nomes, Saramago: O Sr. José, o escrivão da vida e da morte, sabe que não pode pronunciar-se o nome de Deus sobre o silêncio anónimo de todos os homens. Dei o nome de Deus, Saramago, só para reclamar que se digam também todos os nomes silenciados pela crueldade de Herodes.

És um herege, Saramago, e herege quer dizer o que escolhe, o que conta uma história diferente.

Continua a narrar, Saramago, não contes a história que nos contaram, mas sim a história com que ainda sonhamos.

Não aceites nenhuma verdade, Saramago, pede contas a todas as verdades.

Não te submetas à civilização que nos impõem, Saramago, continua a criar uma civilização à qual possamos pertencer livremente.

Avisa os vizinhos, Saramago, escreve para dar a voz de alarme, aí vem o assassino, o déspota, o torturador, o indiferente, o desdenhoso, o que odeia todos menos a si mesmo, o que encolhe os ombros; enfrenta-os, Saramago, com a paixão dos teus romances, não te dês por vencido, Saramago, não desistas.

Os teus leitores, apesar de serem muitos, são sempre poucos, mas os teus leitores, mesmo que sejam poucos, são sempre muitos.

Dá a cara à tua ilha ardente, Saramago, e navega com ela, com a tua jangada de pedra narrativa, ao lado de Pilar, até nós, os teus amigos aqui em Guadalajara, onde os esperamos aos dois, com os braços abertos, para ouvir finalmente o canto das sereias.

Continua a escrever, Saramago, a interminável Odisseia que vais cantando de ilha em ilha, de leitor em leitor, até formar o mais bonito arquipélago da Terra, o rosário do livro que se nega a escrever a palavra Fim.

Não, a ilha de Saramago não acaba de nascer, a ilha não teve tempo de fazer história, a ilha espera o romance seguinte de José Saramago para continuar a nascer, para inventar a história, para dar olhos aos cegos e nome aos anónimos e justiça ao oprimido e vida à criança.

Em meu nome e no nome de Gabriel García Márquez, tenho um imenso prazer em oferecer a Cátedra Latino-americana Julio Cortázar ao grande escritor português e universal José Saramago.

Texto com que Carlos Fuentes recebeu José Saramago durante a sua visita ao México, em Guadalajara, Jalisco, a 13 de Março de 1998.

Revista Camões

Retratos com palavras - José Saramago

Um homem vem a subir a rua
Baptista Bastos

Foto Daniel Mordzinsky
"Este año el Nobel ha tenido suerte. Saramago está por encima del prémio. Como Saramago es un sabio, sin duda soportará la gloria con esceptcismo y, después de dar las gracias como un caballero portugués, seguirá escribiendo obras maestras desde la soledad de la lava."

Manuel Vicent - El País

Um homem não é só aquilo que um homem faz. Um homem é também aquilo que ele não fez, e aquilo que ele não permitiu que lhe fizessem. Revejo agora este homem seco e alto, olhos cortados em bisel, boné, passo puxado pelas pernas, passo largo e firme, cara fechada como se fora a ocultação de uma dor só por ele decifrável. Quando sorri, manifesta-se-lhe uma iluminação feliz.

Vem a subir a Rua Luz Soriano. Cumprimenta o senhor João da leitaria, ocasionalmente entra e bebe um café. Um café pausado. O homem é um homem pausado. É um homem que recusa despovoar-se. O homem pausado gosta de falar de pessoas e de sobre pessoas escrever.

É uma época infausta e um tempo inclemente. Um tempo cavo e triste. Um tempo imoral, que exige obediências e servidão. O homem pausado, de passo puxado pelas pernas, passo firme e largo, activa nele a moral do trabalho e a ética da esperança.

Estou à varanda do jornal onde trabalho, e vejo o homem seco e grave entrar no outro jornal, que fica na mesma rua. Vai cumprir a sua tarefa: entregar originais; vai continuar um destino: não ser neutro.

O homem esteve toda a manhã a traduzir livros por outros homens escritos. O homem é um escritor que reescreve, na sua língua antiquíssima, o que outros escreveram nas suas línguas de berço e leite. Por vezes, nesse ofício solitário, o homem diverte-se. Por vezes, nessa profissão humilde, aborrece-se. Mas o homem que sobe a rua dos dois jornais vai rematando a vida num arredondar de conta ao fim do mês.

O homem vai tão mergulhado em pensamentos que ninguém imagina que, lá dentro, nele, no lá dentro dele, agitam-se ecos nostálgicos e porventura obsessivos. O homem não medita em fortunas. O homem não ambiciona glórias. O homem que sobe a rua dos dois jornais deseja, somente, entregar o artigo, para regressar a casa e regressar à banca. O homem, a essa hora do sobre a tarde, quando a tarde começa a ser o risco da noite, escreve as suas coisas, os seus textos mais íntimos, as suas frases mais secretas. O homem está a inventar ruas cheias de mundos. O homem está a dizer aos outros homens que o mundo é uma rua. É preciso subir a rua.

A moral do trabalho, isso mesmo. Traduz de manhã, horas a fio. Escreve, a seguir, crónicas, artigos, recensões. Repousa, no então do então, a redigir os sonhos: fragilidades, desapontamentos, angústias, sentimentos, abusos. O homem escreve sobre a condição humana. O homem escreve ficções, sem nunca deixar que se corroa a película de pudor e discrição com a qual se protege, no mais íntimo e no mais pessoal.

O homem envolveu-se no turbilhão da sua época porque não aceitou a resignação, porque não se submeteu à negligência, porque aprendeu que, mesmo no opróbrio e na clausura, um homem pode ser livre. O homem que escreve é um homem livre. Exactamente porque escreve o homem cujo passo é puxado pelas pernas, cara fechada, gesto pausado, é um homem livre. Lá vem um homem livre. Lá vem um homem de palavras, um homem de palavra; palavra de honra.

Saúdo-o com um gesto. O homem olhou para o homem que, na varanda, o saúda, e sorri aquele sorriso feliz de iluminação feliz. Podia, agora, dizer-lhe uma frase, soltar uma interjeição, berrar um vocativo. Não é preciso: basta o gesto. Os dois homens sabem isso: bastam os gestos; um gesto.

Estou à varanda e, sem ele estar, vejo-o a subir a rua. Ele está noutros sítios, vive agora numa ilha de lava e espanto, escreve, claro!, continua o seu destino, cumpre a sua moral, molda a sua ética. Estou à varanda e vejo-o a subir as montanhas de fogo gelado, lá, para outros mares.

E vejo-o a beijar docemente a docemente amada. Estou à varanda e vôo até à ilha castanha de lava, apenas para conversar com o homem que sobe a rua, que sobe as montanhas e que docemente beija a docemente amada.

Falam dele, no mundo. O mundo aprendeu os portugueses, a dor portuguesa, a melancolia portuguesa, a esperança e o júbilo portugueses, o quente e efusivo amor português ao ler os livros deste homem seco, sábio, sereno, grave, eternamente preocupado com o rigor do pensamento e com a geometria da palavra Ah!, penso agora, à varanda, e a olhá-lo a subir a rua, como foi possível que este homem tivesse empilhado energias suficientes para enfrentar a calúnia, o insulto, o despeito, a inveja, a maledicência, a injúria, a perseguição, a mentira; como foi possível?

Não se exilou, não se refugiou, não fugiu. Deslocou-se, apenas, para outro lugar, continuando a subir a rua, a subir as montanhas; continuando a amar.

Vou no carro. É meio-dia. A TSF dá a notícia: - José Saramago Prémio Nobel!

Páro o carro. Aturdido, carros atrás de mim a buzinar, nó na garganta, sei lá o que está a acontecer-me, começo a sorrir, a rir, começo a voar; de repente, dentro do carro, começo a bater palmas. Estou a bater palmas ao homem que subiu a rua. Talvez seja a isto que se chama emoção; ou comoção?

E lá estou eu à varanda, a olhar o homem de passo puxado pelas pernas. O homem pára, sorri-me, pisca-me o olho, pisco-lhe o olho. O homem olha-me, encolhe os ombros. Como se me estivesse a dizer: são coisas que acontecem.
Revista Camões - 1998 - Portugal