quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Anjos e crianças


Anjos e crianças
Não são poucos os poemas em que Bandeira aborda a infância como região idealizada, cuja simples rememoração pode amenizar o espaço presente da solidão, dor, perda, doenças e aporias que todo adulto precisa lidar [1]
Pedro Marques

(12/09/2008)

Estamos em 1936. A essa altura da carreira, o poeta possuía razoável reconhecimento. Neste ano de seu cinqüentenário sai o volume Homenagem a Manuel Bandeira, com trinta e três colaborações de escritores, intelectuais, jornalistas entre estudos, comentários, poemas e impressões sobre sua obra. A partir da segunda metade dos anos trinta, além dos versos e crônicas constantes na imprensa, passa a ser homem influente nas instituições de fomento ao ensino e à cultura. Em 1935, pelas mãos de Gustavo Capanema, é nomeado inspetor do ensino secundário; em 1938, professor de literatura do Colégio D. Pedro II e membro do Conselho Consultivo do Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Em 1940, é eleito para Academia Brasileira de Letras. O final da década marca, ainda, o início das publicações voltadas aos estudos literários. Em 1937, sai a Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica; em 1938, a Antologia dos poetas brasileiros da fase parnasiana. A seleção e introdução concebidas aí por Bandeira são referências até hoje.

O prestígio artístico, intelectual e pessoal não se converte em engessamento de possibilidades poéticas. Bandeira, não estaciona no radicalismo modernista, sabe retomar e reelaborar modelos tradicionais presentes desde os dois primeiros livros. O conjunto de poemas que compõem Estrela da manhã (1936) retrata o processo. Há um número razoável de poemas metrificados no livro, cerca de dez; bastante, quando comparado a Libertinagem, em que havia cerca de três. Sua poesia, no mais, continua influente no contexto nacional, em meio à aparição de pesos como Augusto Frederico Schmidt, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes e Murilo Mendes.

Para Leônidas Câmara (1980, p. 168), neste livro, o sarcasmo e a ironia que os “anteriores utilizam com alguns disfarces, com uma boa dose de artifícios, surgem de corpo inteiro. Aqui o prosaico, o nada tradicionalmente poético ou o poético exaurido são materiais que o poeta utiliza na clara saída da poesia”. São muitos poemas a confirmar essa observação, embora o aproveitamento dos temas até então não poéticos ou prosaicos seja algo, a meu ver, decisivo desde O ritmo dissoluto e consolidado em Libertinagem. Pode acontecer ao leitor que leia de enfiada a obra de Bandeira do início, chegar em Estrela da manhã sem se surpreender com a expansão sobre os temas corriqueiros e, assim, veja-os despidos de “disfarce” ou “artifícios”.

O volume expõe pluralidade formal e temática. Há convivência entre verso livre, poema-prosa, redondilhas maiores e menores, etc. Poemas que falam de anjos, de amadas, de enterro, de paisagens citadinas, enfim, uma flora sortida. A diversidade é parte daquela característica de coletânea de seus livros. Suas publicações absorvem, inclusive, textos da época de outros volumes. Daí a dificuldade de eleger unidade rígida para qualquer um de seus livros, aparentados a painéis pouco lineares com algumas constantes de técnica, fundo e forma.

Continuam os cortes no cotidiano que, de certa maneira, viram sua assinatura. Os poemas em geral são curtos, alguns deles minúsculos, trazendo não raro apenas uma sacada ou flash, como o “Poema do Beco”. Às vezes, advém alguma linha narrativa precária que ora nos perde, ora nos acha nesse mosaico de assuntos cujas formalizações se refazem. Bandeira, como sempre, manobra formas fixas consagradas do gênero lírico, mesmo que só nos títulos das peças: “Canção das Duas Índias”, “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”, “Cantiga”, “Chanson des petits esclaves” e “Rondó dos cavalinhos”.

Região idealizada
“Sacha e o Poeta” é desses como que desentranhados do dia-a-dia. Desses instantâneos como se pululantes ao faro do poeta capaz de extrair poesia do corriqueiro. Mira de cronista viajante, observa dada realidade cotidiana e a recolhe como a coisa mais singular do mundo. Ao mesmo passo que nos soa familiar, o poema inclui novidade. O mote é simples: um poeta entra em folia com uma menina que mal aprendeu a balbuciar. Conta história, brinca de faz-de-conta, faz barulho com a boca prendendo a atenção de Sacha, até que ela toma a cena e submete o poeta a seus encantos. Os versos acabam movimentando uma das avenidas principais da poética bandeiriana: a infância que impregna os textos de nostalgia e de ternura. Em versos ou crônicas constantemente se entrelaçam elementos da infância pessoal e da observada.


Sacha e o Poeta

Quando o poeta aparece,
Sacha levanta os olhos claros,
Onde a surpresa é o sol que vai nascer.
O poeta a seguir diz coisas incríveis,
Desce ao fogo central da Terra,
Sobe na ponta mais alta das nuvens,
Faz gurugutu pif paf,
Dança de velho,
Vira Exu.
Sacha sorri como o primeiro arco-íris.

O poeta estende os braços, Sacha vem com ele.

A serenidade voltou de muito longe.
Que se passou do outro lado?
Sacha mediunizada
— Ah — pa — papapá — papá —
Transmite em Morse ao poeta
A última mensagem dos Anjos.

1931

(M. Bandeira, 1998, p. 156)

Como os quartos onde morou, Manuel Bandeira também representa sua mitologia infantil, vale dizer, seu próprio material biográfico. Totônio Rodrigues e Rosa, por exemplo, são meros personagens para quem lê “Evocação do Recife” ou “Profundamente”. Algo semelhante ocorre quando se apropria de fatos relativos à infância alheia, como a da Rua do Curvelo. O ambiente repleto de crianças age na sensibilidade do autor, que o poetiza por saudade de sua própria infância, por enxergar no mundo das crianças uma inesgotável fonte para sua produção em verso e em prosa. Na percepção de Ribeiro Couto (“No pórtico da Academia”, 2004, p. 65), a própria seqüência de cenas de “Na Rua do Sabão” teria inspiração nesse ambiente: “da vossa janela, olhando pelo morro abaixo os quintais da Rua Cassiano, vedes a garotada saltear com assobios e pedradas o balão”.

Há textos em prosa que assessoram a compreensão dos poemas que enfocam a infância. A sobreposição entre a prosa e a poesia, além de tudo, constitui riquíssima fonte de relações temáticas, permitindo refletir sobre as atuações do poeta e do cronista. Uma crônica em particular deve ser confrontada com “Sacha e o Poeta”. Um trecho de “A Trinca do Curvelo” (1966, p. 22), em que Bandeira oferece um rico apanhado da presença infantil nos arredores da ladeira do Curvelo:


Os piores malandros da terra. O microcosmo da política. Salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo, – até de partir as vidraças das minhas janelas! Mentir é com eles. Contar vantagem nem se fala. Valentes até na hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar assassinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só com a saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes.

Mais que a temática semelhante, o excerto situa a infância como época de felicidade, de pureza que cega as crianças das agruras da vida adulta. Não são poucos os poemas em que Bandeira aborda a infância como região idealizada, cuja simples rememoração pode amenizar o espaço presente da solidão, dor, perda, doenças e aporias que todo adulto precisa lidar. Em contraposição à maturidade, na tenra idade, aparecemos inconscientes para coisas desagradáveis. Em “O impossível carinho”, de Libertinagem, não é incidental que o eu lírico, “em troca de tanta felicidade” vinda da amada, confesse confrangido que a premiaria com “as mais puras alegrias de tua infância”.

Como no poema, em “A Trinca do Curvelo” a criança é associada aos anjos. Em outro trecho, quando relata a morte de um menino da trinca que falecera de sarampo, dirá: “... e lá se foi para a trinca dos anjinhos de Nosso Senhor!”. A correlação tradicional anjo / criança morta emerge, ainda que um pouco modificada, em outra peça de Estrela da manhã. Nos versos de “Jacqueline”, a criança parece em seu velório “mais bonita do que os anjos”. Assim, quando ouvimos Zé Kéti cantar “é mais um coração / que deixa de bater / um anjo vai pro céu”, no seu samba de protesto “Ascender as Velas” (1970), já imaginamos que a mortalidade infantil atacou mais uma vez no morro.

Em “Sacha e o Poeta” há um contraponto entre a condição de criança – aurora da vida, mensageira dos anjos, beleza pura –, com o ser poeta – aquele que consegue sugerir o inefável e, pelo empenho em recriar a língua, reveste-a sempre com o ar da novidade, de juventude, levando o leitor a uma experiência inesperada de linguagem.

Sacha com sua língua fragmentária, feita música mágica, transmite ao poeta algo que seria inatingível de outro modo. O poeta, que quis criar a novidade, abriu as lágrimas na menina. Mas Sacha não é vingativa, sendo pura, retribui com o etéreo, com a mensagem dos anjos. Proporciona ao poeta uma gota da própria infância dele, coloca-o em contato com o essencial do ser criança que um dia foi: criança como mensageira da ternura que no poema é também divina. Do confronto entre Sacha e o poeta, nós espectadores herdamos o conflito: a infância perdida para sempre e a saudade do único tempo em que fomos verdadeiramente felizes.

Referências


Bandeira, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro / São Paulo: Record / Altaya, 1998.


___. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro / São Paulo: Record / Altaya, 1997.


___. Os Reis vagabundos e mais 50 crônicas. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1966.


___. Poesia completa e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1977.


Câmara, Leônidas. “A Poesia de Manuel Bandeira: seu revestimento ideológico e formal”, in Brayner, Sônia. (Org.). Manuel Bandeira / Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira / INL / MEC, 1980.


Couto, Ribeiro. Três retratos de Manuel Bandeira. Introdução, cronologia e notas de Elvia Bezerra. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2004.

Kéti, Zé. Zé Kéti. Rio de Janeiro: Itamaraty, 1970.


[1] Este artigo é um fragmento – especialmente preparado pelo autor para esta edição do Palavra – do livro Manuel Bandeira e a música: com três poemas visitados, que Pedro Marques lançou recentemente pela Editora Ateliê, em co-edição com a FAPESP.
Le Monde Diplomatique

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